O peso da vida















O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.




Eduardo White
In "O pais de mim"

Dia Mundial de quê???


Quem poderá domar























Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?


Manuel Alegre





Adriano deixou-nos há 25 anos. A sua voz perdurará sempre na nossa memória.
Aqui é apresentada uma versão desta magnífica balada.

Retrato do Herói
















Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
E morre devagar de morte certa.

Homem é quem anónimo por leve
Lhe ser nome o nome própria traz aberta
A alma à fome fechado o corpo ao breve
Instante em que a denúncia fica alerta.

Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
Dá o sangue ao futuro e fica ileso
Pois lutando apagado morre aceso.


Manuel Alegre
in "O Canto e as Armas"

Quem muito viu




















Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas,
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
o mundo e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.



Jorge de Sena

in "Poesia", Vol III

Sonhos















Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.


Agostinho da Silva

Aromas























Africa (1998), óleo de Raphael Sirianni




Deitada me fico
acordada sonhando,
no escuro espio
o sono esperando...

Já estou embalada,
Piso terra dura;
vermelha , cheirosa
calor que perdura...


Aromas gritantes
de tropicais frutas;
sons familiares
de aves malucas...

Logo à minha frente
altiva , frondosa,
se ergue , gigante,
mangueira formosa.

Corro num repente
de braços abertos...
Lágrimas saltando
E sonhos despertos...

Choro amargamente
A ela abraçada...
Falo docemente
de dor carregada...




Ana Bela

Poema ela, a noite e eu

















O Mundo naquela noite
era apenas um seio branco
macio como sumaúma
a cintilar na prisão escura das minhas mãos.

o seio branco era o Mundo
e nada mais havia perto ou longe
nem um agente disfarçado
que fosse sequer uma insinuação de Vida
a não ser o desejo crescendo
crescendo como um vulcão dentro dos olhos semi-desmaiados
voluptuosamente.

E
só o seio branco
maravilhosamente branco de «lanho»
era o Mundo sem injúrias
vibrante e nu cântico de carne.
Só o seio branco e a treva
naquela noite empaludada de frémitos
era o Mundo.



José Craveirinha
In “Poemas Eróticos”

Torresmos em machimbombo queimado



















À partida o machimbombo parecia
um ónibus lotado de gente
em viagem.

Lá para o quilómetro 20 a ou este da Gorongosa
chaparia e respectivo tejadilho ficaram
fuliginoso similar de frigideira
fritando várias doses de torresmos
derivantes fósseis de passageiros
interrompidos antes do terminal.

Sobra este prosaico odor da sintomática
machimbombesca fotocópia de esquife.

O impaciente estardalhaço dos tiros
ainda por cima esfrangalhou o original.



José Craveirinha

Primeiro poema


















Senti entre o sono e a certeza uma ave desenxabida de cores
Lutando dentro de mim,
Esgrimindo com Deus e o Diabo…
Tentando esgueirar-se por algum orifício do ar que só ela sabia existir.

Estou com Deus dizia, estou com o Diabo sabia…

Não.
Estou com Deus menino
Neste largo desfiladeiro em que me encontro liso e escorregadio.
Escorregadio, tão desumanamente perdido no pólo Norte ou Sul,
Bêbedo do álcool que não mais importava,
Simplesmente sem que o vento soprasse,
Sentia essa ave lutando dentro de mim esquivando-se da vida…

Queria voar,
Mas tão longe estava o chão que de certeza me magoaria…
Queria gritar,
Mas a afonia ensurdecia os miseráveis e os distraídos,
Queria chorar,
Mas a gota húmida do choro, a lágrima,
Caía em desalinho no solo,
Nas calças em xadrez de Accra,
Nas escadas que levavam ao inferno delicioso
Que todos tentam esquecer (ignorar)
E assim, as gotas húmidas das lágrimas;
Caíam no remoto e imenso calcanhar
Que um dia a ave possuíra…

Queria pentear os cabelos…

Ah! Que engraçado…
Onde teriam eles os cabelos bonitos e os cachos ido parar?
Sabia a ave desenxabida de cores que nunca mais sentiria os cabelos…
Os anos passaram,

Os séculos despertaram
E finalmente chegaram os milénios
E a ave nunca mais sentiu os cabelos.

Sentiu sim,
As mãos.
Essas mãos lindas de Deus e desejadas pelo Diabo
Que em vida tão amargamente nos queimam beatas de cigarro nos
lábios.
Sentia tão perto de si a ave,
As mãos que puxando,
Puxando…
Iam torturando aquilo que outrora
Tinha sido a ave graciosa em cores e sabores…

Queria amar,
Mas não podia porque tristeza…
Diziam os reflexos de mim ao espelho que já tinha amado.
MEN-TI-RA..
Tinha sim a ave limitando-se à fêmea
Como o macho ao íman, nada mais, nada mais…

E lindos são eles os que ficaram
As duas estrelas cadentes
No céu que Deus e o Diabo
Lembraram-se de me presentear
No dia em que acordei com a certeza
Que tinha sido o sono e vi que não morri.



Ana Maria Branco

Na milésima de tempo















Foto de Steve Vinh Nguyen





A inversão do mundo nos cabelos do infinito
Uma lua apagada de prazer
A razão é um jardim florido pela ilusão
Na milésima de tempo de uma entrega



Amélia Dalomba