Identidade











Costumo definir-me a mim própria como a página cem de Gedeão,
à procura da cento e vinte e sete.
Cresci e brinquei com Clarissa, sob um pé de laranja lima; fugia à
escola para passear no rio Mazungue, numa canoa chamada Rosinha.
Tive um cão que se chamava Corto Maltese e com ele percorri os
Jardins Suspensos da Babilónia, à procura da árvore dos direitos
humanos.
Aprendi a amar com Florbela Espanca e Alda Lara. Namorei com
Viriato, fui mulher com Vinícius e descobri que o amor só é eterno
enquanto dura; sofri amor e saudade com António Jacinto, em todas
as cartas que não enviei.
Tornei-me “gente” com Manuel Bandeira, “Che”, Neruda e muitos
mais. Com eles andei em busca da identidade perdida na infância,
esquecida no casamento e mais tarde reencontrada na solidão do
quotidiano.
E quando um dia tiver de ser pó, cinza e nada e não mais com Jorge
Amado poder pastorear as noites e a vida, quero fazê-lo à Mário de
Sá Carneiro e tal como ele ir de burro: a um morto nada se nega;
assim que não me falte champagne e Albinoni, com muito violino
à mistura (de Pagannini, ou até mesmo só aquele do telhado…).




Anny Pereira

Quase haiku















Sobram insones rumores infernais
como que viesse uma tempestade avassalar
os desígnios d’outra moldura





Lopito Feijoó

Aos que virão depois de nós




















I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranquilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.



Bertold Brecht

Eremita das trevas























Observo as trevas.

As ervas
que apalpo na polpa da escuridão
são apenas tretas da poesia
e orvalho de lágrimas
ouço as trevas num luto
só e só quando me escruto!

Não sei
se sou eu a noite
- a noite o que é senão noite? -
mas sei que mordo as trevas
quando perscruto o frufru das sombras!

Sombras que me contam
as histórias dos seres que fui
antes de ser um querer que era:
um sacrifício oferecido à quimera!

Marcha na penumbra a poesia
eu fornico as sombras do dia
a noite é minha concubina
- sou eu o eremita das trevas!



Cristóvão Luís Neto

Canção do silêncio


















Ouvindo o silêncio das coisas remotas,
Distingo legendas que os outros não lêem...
Vislumbro paisagens confusas, remotas,
- Silhuetas de imagens que muitos não vêem!...

Desvendo os mistérios da selva distante,
Aonde costuma rugir o leão...
- Arroios cantando, num som murmurante,
Anharas perdidas p'ra além do sertão...

Capim verdejante nas húmidas chanas,
Lençol de esmeralda que o sol vai corando...
Matizes da selva, luar das savanas,
Mabecos fugindo, pacaças pastando...

Silêncio das noites sombrias, caladas,
Segredos da selva, murmúrios da aragem...
- Holongos ligeiros, fugindo, em manadas,
Regatos correndo por entre a folhagem...

Latidos de hienas em torno dos quimbos,
Já dentro da noite, se a fome as aperta;
Quimbundas alegres, sachando os arimbos
Depois que o som cavo do goma as desperta

Chingufos ao longe - rufar permanente -
Chamando ao batuque de intensa folganca...
E os pretos, gingando pra trás e pra frente,
Agitam as ancas na febre da dança!...

E a lua, do alto - qual "hostia boiante" -

Envolve o cenário num manto sidério...
- Canção do silêncio da selva distante,
Bem poucos entendem teu som de mistério!
...



M. Correia da Silva
In "Cantares de Angola"

Fonema d'orvalhos


















Dou aos meus versos a sonolência dos teus gemidos
porque não encontrei outra mulher que me aguardasse
com o pote d’orvalhos viçosos:
manhãs de água se levantam no ímpeto
nutres as peles de meus tambores na humanidade
para não mais esquecer as vogais despertas da erosão
desde o primeiro calvário ao hímen nucleado
que estendias nos meus braços de fome.



João Tala

Ó Angola meu berço do Infinito


















Ó Angola meu berço do Infinito
meu rio da aurora
minha fonte do crepúsculo
Aprendi a angolar
pelas terras obedientes de Maquela
(onde nasci)
pelas árvores negras de Samba-Caju
pelos jardins perdidos de Ndalatandu
pelos cajueiros ardentes de Catete
pelos caminhos sinuosos de Sambizanga
pelos eucaliptos das Cacilhas
Angolei contigo nas sendas do incêndio
onde os teus filhos comeram balas
e
regurgitaram sangue torturado
onde os teus filhos transformaram a epiderme
em cinzas
onde das lágrimas de crianças crucificadas
nasceram raças de cantos de vitória
raças de perfumes de alegria
E hoje pelos ruídos das armas
que ainda não se calaram pergunto-me:
Eras tu que subias montanhas de exploração?
que a miséria aterrorizava?
que a ignorância acompanhava?
que inventariavas os mortos
nos campos e aldeias arruinados
hoje reconstituídos nos escombros?
A resposta está no meu olhar
e
nos meus braços cheios de sentidos

(Angola meu fragmento de esperança)
deixai-me beber nas minha mãos
a esperança dos teus passos
nos caminhos de amanhã
e
na sombra d´árvore esplendorosa.)



João Maimona
In “Traço de união”

Sei que aos 30...
















Sei que aos 30,
já a velhice me alcançou
e a vida me venceu.
E há muito tempo que caí de medo.
Há muito tempo que arde
na fogueira a chama da vida.
O fumo
que dela sai,
confunde-se com as nuvens no céu,
confunde-se comigo.



Ana Maria Branco
In “Antologia da poesia feminina dos PALOP”

The Africa you never see on tv

Mar novo



















6

Tudo é fugaz
entre o desenho do teu pé na areia
e a onda que desfaz
a marca

Entre a guerra e a paz
retorno fisicamente o poema a onda
constante meditação primeira.

Nós e as coisas.

Nada permanece que não seja
para a necessária mudança.
Que o diga o mar.



Manuel Rui Monteiro