Outras margens da mesma Língua













Porque a História também se faz ao contrário, o caçador quando pressente o perigo é tarde demais e saiu já caçado, num golpe de futura sorte ou carnaval linguístico; e o oceano, quintal vasto e multiplicador de margens, convida a viagens com direito a retorno melhorado e banquete renovador. Depois dos gestos, a linguagem falada é a boca sincera dos sentimentos e a cultura apanha boleia para ir mais longe, enfeitiçar outros mundos e mascarar-se de novos conteúdos.

”(…) Ela não voltou a falar. Lava as chávenas com espantável lentidão. Suas mãos acariciavam o vidro por onde eu havia bebido. Senti como se ela me tocasse os lábios e me retirei nesse embalo de ilusão.
Me dirigi para casa, sem vontade de caminho. Demorei em coisas nenhumas.
Nisto, uma estrelícia, simples flor, me deflagra os olhos. O vendedor me cativa a atenção agitando a crista laranja da flor. (…) As mãos se ridicularizam com a intransitiva flor. Chego a casa e a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu tinha encenado flor em jarra.
Sentado, frente a uma cerveja deixo entrar em mim a voz: preciso é de mulher. Necessito de um acontecimento de nascência, uma lucinação. Careço de um lugar para esperar, sem tempo, sem mim. Devia haver um feminino para ombro. Porque ombra era o nome único que merecia o encosto daquela mulher.”1

Depois de Língua conquistadora, a Língua conquistada virou raiz reprodutora - arma e fogo artificial; embrião e simultânea gravidez.
E é sabido pelos mais-velhos que uma Língua grávida pode parir culturas, cores novas e contornos imprevistos em pessoas humanas. E todas as grávidas levadas, e todos os séculos extraídos e a terra sangrando em lágrimas de saudade, e todos os navios idos haviam de levar, além de fomes e músculos, sementes de uma flor mestiça com condimentos de diferença e criativa ramagem. Na fogueira do tempo, as chamas cercaram o lacrau, o lacrau picou o próprio corpo, e o veneno circulou feito febre nova, nova temperatura, temperatura de uma nova errância.

“Naquela hora em que os pescadores atravessavam o canal com seus apetrechos tão resumidos para virem fazer a aguada, o mar abria boca-réstia de sono ainda em maré baixa a espreguiçar-se, sonolentamente, sob o sol sem nuvem. Esteira de dormir qualquer liturgia mesmo de difícil, um esse porém afofalhado imenso de se apresentar sem vaga, na areia da beira-praia, em desinteresse de pureza pisada de ilusão. Pois só a linha trémula, tão empoucada de suave movimento, demarcava a aparente separação de diferença entre a terra e o mar. (…) Cheiros retirados à noite. Misturados. Essências de peixe. Néctares de algas, plantas e coisa no ar como aroma de árvore e fruto da beira rio, amadurecido. Rascaldo ou quê.”2

Porque a História também dá golpes num corpo linguístico que, lá longe, é a sombra de uma mesma imagem. As investidas políticas, e as de letras, e as sociais, e as mundanas, e as imprevistas, numa dança alargada - e mesmo que controlada - libertam-se das correntes pré-concebidas e o inesperado vence. O Kinaxixi com as crianças e os pássaros luandinizados, vencem; um santo de pessoa como o Arnaldo Santos vence; o Pepe solta um cão entre os caluandas e o cão morde a realidade; assim o cão do Honwana tomba mas a Isaura segue nos nossos sonhos de criança; as crianças do Manuel Rui, depois da fogueira e das estrelas do povo, só querem ser ondas; as mumuílas fazem transumância num poema da Paula; os olhos do Mia brilham à passagem dos flamingos e o leite de cabra lá do Sul se entorna meio azedo nas palavras do Ruy Duarte de Carvalho. E mesmo assim ficam nomes por celebrar.
A Língua, à velha maneira de Brecht, retira passividade às margens e intimida o rio a ser mais plural; o rio que corria estreito e manso, agora caudaloso faz uso de uma rebeldia saudável. Porque a natureza da água (da cultura) é mover-se, descendo o vale ou trepando a montanha, em luta de vaivém ternurento com a vã pressão dos homens. E se a margem toca o rio, o rio beija a margem numa dúvida aquática sem limite de exactidão.
As Línguas faladas e escritas, e as sonhadas, e as censuradas, nunca foram pertença de ninguém. Afinal, o maleável não pode ser amarrado, e à força de tanto contacto, o original fez da sombra verdade, e o resto também.

“O que ainda que ninguém que falou, ainda não existiu. (…) O homem ainda não descobriu a morte, muadiê. Se nem ainda chegou na lua, coisa-de-ver, quanto mais… Com morte eu dou-me bem, afirmei e não regresso. A senhora tumbandala não me assusta. O meu medo só é o que o senhoro bem sabe - voz, cara e alma de gente não encontrar, o deserto desumano, solidão de sozinho. Eu chego de dormir de luz acesa para fingir sol em meu quarto. As trevas danam a alma.”3

Nesse refluxo musical vindo de outras margens, há uma coloração que no tempo se espalha devolvendo à Língua uma faceta adequada para enfrentar futuros.
À mistura estão as pessoas - que são as margens da cultura, e os destinos da Língua revistos por aqueles que a manejam como utensílio quotidiano. Que esta linguagem seja, pois, ferramenta e prazer, veículo seguro mas maleável; que as gerações vindouras nela vejam molde aberto para memória e labor criativo. Porque bonitas são as Línguas depois de manejadas e celebradas pelas pessoas.


1 Mia Couto, in “Contos do nascer da terra”, Caminho, 1997, p.123.
2 Manuel Rui, in “Rio Seco”, Cotovia, 1997, p.9.
3 Luandino Vieira, in “João Vêncio: os seus amores”, Ed. 70,1987, p.84.






Ondjaki
10/12/2004

* comunicação lida na conferência, “A Língua Portuguesa: Presente e Futuro”, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, dias 6 e 7 de Dezembro de 2004, em Lisboa
1 Response
  1. Madá Nunes Says:

    Nossa, este espaço deve ter dado um imenso trabalho para chegar até aqui, mas imagino o amor que vc tem por ele! parabéns pela iniciativa. Lê-lo é como fazer uma viagem há muito esperada. Parabéns!
    Madalena