Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos




















Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
no olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos
sexos das mães, afogavam-se em lama, no meio dos
sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os
oleiros desistiram de encomendar a sua obra a Deus.
Enormes cuidados foram inventados para proteger o fogo
nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em
chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas,
colavam-se aos dedos como cinza húmida. Os lábios dos
sexos das mulheres paridas inchavam carnudos de uma
carne branca e os ventres pendiam como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderam todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do
Jau ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe
os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos
celeiros e essa semente assim era servida aos homens e
daí lhes ocorreu um tal vigor que os seus pénis cresceram
desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e
mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos
buracos e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo
com esforço as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite
vicejaram musgos e o leite das vacas alterou-se em soro, a
coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que
até nos areais cresceram talos e as enxurradas
produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os
diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer
farinha. As próprias aves morreram quase todas e apenas
se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.
E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu
todo o sentido. As gargantas entupiram-se de limos
e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os
corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando
mais tarde a chuva parou, das bocas saíram grossas
aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a
seca voltou e o mundo secou. A carne antiga a dar-se
agora em terra, os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido.



Ruy Duarte de Carvalho

In “Sinais misteriosos... Já se vê...”