Aspiração




















Quero chegar no raiar da manhã.
No afago fresco da madrugada.
No canto do galo e no pregão da quitandeira.
Na buzina do candongueiro
E no sotaque: madrinha quê manga?
Compra só então mãe, dou uma pra esquebra...

Quero chegar na aurora do dia.
Percorrer as ruas d'acácias em flor.
Ai as acácias da Vila Alice e do Maculusso, sorrindo coradas...à minha chegada!

Quero o aroma branco, doce, de frangipani sentir
Lá para as bandas de Sambizanga
Comprar miconde n'avozinha da igreja,
que me espera de promessa, juro por sangue de cristo.

Quero sorrir
Sempre a sorrir nesta chegada
Como se não soubesse fazer mais nada...

Quero subir a avenida, degrau a degrau no sonho
No de dormir ou naquele acordado
Exibindo meu orgulho de filha da rua, do asfalto e da terra, batida
Onde passou o carro da tifa
E os amantes cantaram prá lua
Olhar as mangas que o avó não colheu
E as goiabas que também não comeu

Quero pisar aquele chão e olhar o meu mar
E o horizonte estar dentro de mim
feito onda a me inundar de segredos que não guardei
Um deles, ser feliz, porque cheguei...



Maria Clara Santos

Agora Mesmo




















Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen


Manuel Alegre