Nova Canção da Vida


















O meu ideal, a minha felicidade,
é ter uma cubata, mesmo ali
dentro do mato, longe da cidade,
mas sempre, meu amor, ao pé de ti.

O culto da cidade em desprezo do mato!
Eu não conheço nenhum mal maior.
O meu ideal é este, e nele me retrato:
– o mato, uma cabana, o nosso amor...

Ter um jardim cercando o nosso lar
(é lar uma cubata se Deus quer
que nela, sempre, o homem e a mulher,
em sonho e obra, sejam par e par);

ter lavras de feijão e de batatas,
de milho, de ginguba e de mandioca,
para nós dois e para quanta boca
de fome houvesse ali pelas libatas;

gozar o bucolismo das paisagens
(aqui, uma palmeira; além, uma mulemba...);
e admirar a loucura infantil dos selvagens
no prazer da rebita e da massemba;

ter mesmo ao pé da casa uma mangueira,
que desse sombra e fruto ao cansado viajor;
de dia, trabalhar em lida meeira;
à noite, adormecer na benção do Senhor...

– Vamos viver assim a vida inteira,
vamos viver assim, ó meu amor!



Geraldo Bessa Victor

Hier Encore




Charles Aznavour

O lado bom

















Foto de Pedro Norton de Matos em "Caminhadas e Descoberta em STP"





Quero ser uma ilha,
um pouco de paisagem,
uma janela aberta,
uma montanha ao longe,
um aceno de mar.
Quando precisares de sonho,
de um canto de beleza,
de um pouco de silêncio,
ou simplesmente
de sol... e de ar...
Quero ser o lado bom
em que pensas,
isto que intimamente
a gente deseja
mas nem sempre diz
- quero ser, naquela hora,
o que sentes falta
para seres feliz...
Que quando pensares
em fugir de todos
ou de ti mesmo, enfim,
penses em mim...



Millôr Fernandes

Que saia a última estrela ...
























Foto de Alla Chernova, via "O Jumento"



Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito

E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece

E saiam todos os sóis
que apodrecem no céu
dos que não quiseram de joelhos
— mas que saiam de joelhos

E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
Seremos nós a vertigem



Alexandre O’ Neill

Deixem-me viver no meu mundo

















Já tão cansada desta vida pergunto-me como será a outra?
mais tranquila, mais segura?
dormente a minha parece estar,
olho a volta onde estou?
que mundo será este?
se não tivesse vivido o que vivi e o que sofri,
quem seria eu?
onde iria buscar toda esta vontade de correr,
os meus dedos que querem escrever, e tanto,
sou louca ou infantil?
ou por momentos deixo correr o meu pensamento,
e mostro ao mundo, o que me consome aos poucos,
a muitos aflige aos que dizem ser eu criança, insegura, imatura!
o que tanto escrevo?
deprimo-me,
deixem-me ...
deixem-me viver no meu mundo,
tornar falas todas as palavras ,
deixem-me no meu mundo doce e infantil, mas meu.



Sónia Sultuane

Negra
























Foto de "Angola em fotos"




I

Negra! negra! como a noite
duma horrível tempestade,
mas, linda, mimosa e bela,
como a mais gentil beldade!

Negra! negra! como a asa
do corvo mais negro e escuro,
mas, tendo nos claros olhos,
o olhar mais límpido e puro!

Negra! negra! como o ébano,
sedutora como Fedra,
possuindo as celsas formas,
em que a boa graça medra!

Negra! negra!... mas tão linda
co’os seus dentes de marfim;
que quando os lábios entreabre,
não sei o que sinto em mim!...

II

Se, negra, como te vejo,
eu sinto nos seios d’alma
arder-me forte desejo,
desejo que nada acalma;

Se te roubou este clima
do homem a cor primeva;
branca que ao mundo viesses,
serias das filhas d’Eva
em beleza, ó negra, a prima!...

Mas, se a pródiga natura
gerou-te em agro torrão;
s’elevar-te ao sexo frágil
temeu o rei da criação;
é qu’és, ó negra criatura,
a deusa da formosura!...



Cordeiro da Matta

Oração





















Senhor,
dá-nos o prometido no princípio
quanto os homens errantes no deserto
receberam de ti a obrigação;
dá-nos a terra fértil dos eleitos;
a pátria para o povo de escolhidos
que ainda não tem pão.
É a hora,
Senhor!
É a hora da estrela refulgir
guiando os passos do teu povo esparso
nas trevas desta noite de ganância
e dor
e confusão.
É a hora,
Senhor!
Dá-nos o prometido no princípio:
a terra da promissão.


Cochat Osório

Infância perdida




















xxxxxxxxxxxxxxxxxxxpara o Miau


Nesse tempo, Edelfride,
com quatro macutas
a gente comprava
dois pacotes de ginguba
na loja do Guimarães.

Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar
a gente comprava
cinco mangas madurinhas
no Mercado de Benguela.

Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas
a gente fugia da cidade
e ia pràs pescarias
ver as traineiras chegar
ou então
à horta do Lima Gordo
no Cavaco
comer amoras fresquinhas.

Nesse tempo Miau,
(alcunha que mantiveste no futebol)
nós fazíamos gazeta
da escola coribeca
e íamos os quatro
jogar sueca
debaixo da mandioqueira.

Era no tempo
em que Saraiva Cambuta batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

Era no tempo
dos dongos da ponte
dos barcos da bimba
dos carrinhos de papelão.

Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

E havia tua Mãe, Dona Mafalda
trabalhava nos Correios
era prima do Saldanha Palhares
aquele mulato grande jogador de futebol
do Portugal
e empregado do Banco.

Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava de meninos.

Era nos tempos dos doces de ginguba com açúcar.

Mais tarde
vieram os passeios nocturnos
a Massangarala
e ao Bairro Benfica

E o Bairro Benfica ao luar
o poeta Aires a cantar
(meu amor da rua onze o seu colar de missangas…)

Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos
e a Lanterna Vermelha – o dancing do Quooche.

Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para ir estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro mulato dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia do chipipa de mafumeira.

Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do Bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
(lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita essa
mulata…)

Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua
de Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.

Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora

Infância Perdida
sonhos dos tempos de menino.

Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varrer das cinzas
do velho Camalundo.

Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.

Diz a tua Mãe
que o menino branco
um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruído pela Europa.



Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo e com teus irmãos
e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então
aquele calulu de Dona Ema.

Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino
branco
bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza
com a vossa pobreza.

Diz tudo isso a toda a gente
que ainda se lembra de mim.

Diz-lhes, diz-lhes
grita-lhes
aos ouvidos
ao vento que passa
e sopra nas casuarinas da Praia Morena.

Diz aos mulatos e brancos e negros
que foram nossos companheiros de escola
que te escrevo este poema
chorando de saudade
as veias latejando
o coração batendo
de Esperança, de Esperança
porque ela
a Esperança
(como dizia aquele nosso poeta
que anda perdido nos longes da Europa)
está na Esperança, Amigo.

Edelfride, você não chore
saudades do Castimbala
nem lhe escreva
cartas como essa
que são de partir
meu pobre coração.

Nesse tempo, Edelfride,

Infância Perdida
era no tempo dos tamarineiros em flor...




Ernesto Lara Filho

O Henda I Xala

















A loucura tocou as nossas mãos.
Súbitas luzes passam nos teus olhos.
O excessivo pudor nos aproxima:
Riqueza dos segredos revelados!

Não importa a incerteza e o impossível:
Deles e nós, conscientes, nos sorrimos.
Para além do momento, nós sabemos:
O amor ficará – O HENDA I XALA.



Mário António