Com alma


























dos cantos da vida
parte um véu
cobrindo corpos
e almas

um braço se estende
tentando romper
o véu

conseguirá
porque o véu
é frágil,

talvez não consiga
talvez não tenha
força para romper

talvez o véu
não se rompa
porque o braço demora
demora

a esperança
é depositada apenas
na alma,

se a alma existir
pode-se esperar
que o braço
rompa o véu
com a alma.



Ana de Santana

Inocência



























Já venerei dias de miséria
nos ponteiros trilhados
de um relógio sem tempo
onde cresce o meu tormento


o mesmo flash se repete
com miúdos sem nome
a abraçar desgraças


nas ruas...


andam aos milhares
soltando as malícias do ventre
as vozes de fome


no e mesmo instante
em cada flash
brilham as barrigas
destes miúdos que esperam
(sem tempo) a abraçar desgraças
contrastam com as barrigas eminentes
da gente que passa e
se escapa a escarrar luxúria
regresso odiosamente à minha infância
com impulsos incontrolados do coração
onde se encontra a muda revolta da minha aflição


vejo-me
revejo-me
nestes retratos na rua
onde o flash se repete em cada esquina
como um pedaço de mim
escondendo-me dos bocejos da noite
mas essa graça da inocência...eu já perdi.



Chô du Gury

Batam palmas


















Batam palmas
Sou indigente vagabundo
Quero brindar-vos com verdades d'alma
Expulsar as serpentes que me atormentam


Reunir-me com os dementes
Pulular nas lixeiras da mente
Declamar poemas
Com palavras minhas


Ainda que ridicularizadas
Não quero que as abortem
São minhas e as defendo
Confesso


Batam palmas!
Batam palmas por favor

Vou declamar
Apalpar-vos a alma
Ver-vos no meu microfilme
A exorcizar a vossa poesia
Que sairá aos soluços


Batam palmas!
Batam palmas ...palmas


Preciso e quero arrotar
Toda a poesia vadia
Impregnada de todo o meu eu


Batam palmas! Batam palmas! Batam



Chô du Gury

África escultural



























áfrica
da nudez plangente
dos braços nus dos embondeiros, silhuetando na noite
áfrica
a contemplar embevecida a imensidão dos oceanos
na lembrança trágica dos filhos deportados
áfrica
dos homens bêbados
arrastando os pés descalços
na terra sequiosa de vida
da mulher nua que se entrega para se achar
das barrigas dos meninos
barrigudos de fome
áfrica
do ritmo quente
do batuque e da farra
perdidos na noite
do canto triste dos poetas
dos seus poemas
escritos com sangue e suor de gente

acredito em ti
como a áfrica escultural dos homens
esculpindo a vida
na pedra da vida




Domingos Florentino
In “Raízes do porvir

A prometida



























Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta

papá homem grande
se meteu
uma vaca
um saco de farinha
um tambor de cana
umas folhas de tabaco

a permuta
a prometida

três
dias
depois
da lua

com fome de amor
boca acre não come
com sede de ternura
garganta seca rejeita água
as lágrimas engrossam
e rolam
no rosto macilento

Djena dezassete chuvas
Djena uma vida por viver
Djena a prometida
Djena mulher de hoje
tem fome
não come
tem sede
não bebe

corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável




Tony Tcheca
in "Vozes poéticas da lusofonia"

Uma mão relampeja

























Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro.



Eduardo White
In “Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave”.
Edição da Caminho, Lisboa, 1992.

In the arms of the angel





Spend all your time waiting
for that second chance
for a break that would make it okay
there's always some reason
to feel not good enough
and it's hard at the end of the day
I need some distraction
oh beautiful release
memories seep from my veins
let me be empty
oh and weightless and maybe
I'll find some peace tonight

In the arms of the angel
fly away from here
from this dark cold hotel room
and the endlessness that you fear
you are pulled from the wreckage
of your silent reverie
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here

So tired of the straight line
and everywhere you turn
there's vultures and thieves at your back
and the storm keeps on twisting
you keep on building the lines
that you make up for all that you lack
it doesn't make no difference
escaping one last time
it's easier to believe in this sweet madness oh
this glorious sadness that brings me to my knees

In the arms of the angel
fly away from here
from this dark cold hotel room
and the endlessness that you fear
you are pulled from the wreckage
of your silent reverie
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here



Sarah Mclachlan

Cai... ou não cai??






















Fabuloso (e oportuno) cartoon de Raim, no seu blog que completou 2 anos há alguns dias.
Rendo a minha homenagem ao seu talento e deixo os parabéns!

Ofício



























Começo o Poema:
O coração é uma seta apontada ao centro do poema.
Não, não está bem;
risco ou rasgo o papel.

Recomeço o Poema:
O Homem é uma espada a fender em dois o Amor.
Não, não gosto;
apago de novo.

Ou então:
o Amor é uma chama árdua a arder em breve pira.
Pior prosa;
quebre-se a lira.

Recomeçarei:
No primeiro Apollo vou à Lua
e cantarei.


C. T. Chão Bom, 22.7.69



António Jacinto
(in «Sobreviver em Tarrafal de Santiago»,
Edições Chá de Caxinde, 2000)

Carta






















Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p'ra sofrer
Boca Para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão
Minhas mãos são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica jeito
Para o branco me dizer
“Obra de preto sem jeito”
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fios saltam na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mãos
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai para o mar
Larga a lavra deixa os bois
Morre os bois ... e depois?
Se é caçador de palanca
Se é caçador de leão
Isso não faz mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum ...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo meu irmão
Sou fio dos pai da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo meu irmão.



Alexandre Dáskalos

Um dia



















ao António Jacinto



Um dia eu vou fazer um romance
com as histórias da minha rua
antes de se chamar Silva Porto
e os pretos irem embora.
Vai entrar a lua e meninos sem cor
a Domingas quitata, o sô Floriano do talho
com muita mistura de amor
e muito suor de trabalho.
Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola
os batuques da Cidrália e dos Invejados,
os batalhões do "Treze" e do "Setenta e Quatro",
o bêbado Rebocho, o velho Salambio',
a Joana Maluca da garotada,
cajueiros, cubatas, lixeiras,
capim e piteiras,
e mesmo no fim da história,
quando os homens estão desesperados
e as fardas passam em fila,
acendo um sol de Fevereiro,
semeio algumas esperanças
e parto com o meu veleiro
a dar uma volta ao Mundo!





António Cardoso
In “Poemas de circunstância”, 1961

Presença africana




























E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...

- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.
- A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11...Rua 11...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconsequente...

Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...



Alda Lara
In “Poemas

Poeminho do contra



























Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!



Mário Quintana

A mulher é a pátria do homem





























Tomei dessa mulher os braços,
a medida das pernas, o
pensamento;

um rosto africano
um busto de rapariga
corpo de líricas
coisa alguma entre
as mãos

ela é húmida e gratuita
faz-me encher o sermão

habita entre as minhas palavras
como a memória que anoitece

e, dos meninos que lhe nascem na língua
das grandes colheitas na nudez espiritual
marca-me a idade do sonho: cresço

e me abismo da história.

sonho a íris a estrela nas suas órbitas
e vivo desse sonho que habita a profundidade

como d’águas que se debruçam
na profundidade
dessa incriação masculina

onde rescrevi os pés.




João Tala