Cadastrado


















Uma vez, aos sete anos,
Partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.

Dez anos depois, conduzindo um carro,
Não parou num cruzamento de rua
Onde havia um sinal de stop.

Dois anos depois, teve uma briga
Num bar, e partiu a cabeça a um amigo
Com uma garrafa de cerveja.

Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
O seu cadastro provava como desde a infância,
Sempre manifestara sentimentos
Nitidamente de traidor à pátria.




Jorge de Sena
12/Agosto/1969

Utopia























Quisera virar a vida pelo avesso
Criar um mundo só meu
Onde eu pudesse rasgar as máscaras
Quebrar as amarras do medo
Realizar sonhos adormecidos
Resgatar folhas do passado e
arquivá-las na alma
Encontrar as horas perdidas
Fechar os olhos para a realidade
Beijar a boca da alegria
Esvaziar a caixa de saudades
Afogar as tristezas reprimidas
Curar todas as feridas do coração
Tatuar nas retinas as melhores
lembranças
Apagar o tédio
Expulsar a solidão
Romper a monotonia
pálida do cotidiano
Seguir a velocidade do vento
Entrar em uma utopia
Dominar a ciência do tempo
Dar asas aos pensamentos e
brincar de ser feliz !!



Zena Maciel

Liberdade esta palavra





















Liberdade esta palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.




Cecília Meireles

Cruzamentos

























Foto de Dirk S. Grossman, aqui





Tenho saudades da chuva
do meu Largo da Carvalha. Uma chuva
cinzenta e mole que abria longos riachos no meu peito de ansiedade
Tenho saudades do vento
do meu Largo da Carvalha. Um vento
agreste e serrano que agitava os plátanos
fazendo estremecer as folhas amarelecidas
no meu quintal de ternuras.
Tenho saudades das noites
do meu Largo da Carvalha. Noites passadas á mingua
de um abraço amigo e forte
noites de antigas vizinhas que me diziam
menina toma cuidado com os outros porque
tu és diferente e eles não gostam dos diferentes
histórias de lobisomem
cantigas do São João
rezas no adro da Sé.
Tenho saudades dos dias do outro lado do mar
dias de areia e de espuma a salpicarem-me o rosto
dias de barco sem cais nos escaleres da vida
dias de longe e de perto
a cruzarem o meu destino mestiço
entre as tílias do Rossio
e a ilha do chocolate.



Olinda Beja

Aconteceu-me

















Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos !
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.




Almada Negreiros

O que é o espaço?
























O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?

O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta

Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível



Ana Hatherly
O Pavão Negro

Rosa imaginária


























É preciso que fique escrito
antes que a tua baba peçonhenta
nos corrompa a palavra
de ti, só se ouvirá no fim da noite
o ranger de dentes
que teu ódio acalenta
inútil e partido!

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?!

Acordar todas as manhãs
com a rosa imaginária
que não dou ao meu amor??

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?
nessa catacumba
de esqueletos onde moras?!

Sabes Velho Histérico
onde está o ventre de mundo
que seria um dia, o meu?!
Aonde está a criança
que não nasceu
nesse ventre de mundo
que seria, um dia, o meu??

Berra Velho Histérico
ainda
a tua ordem
enquanto não chega o vento!

Berra Velho Histérico
na rádio e no jornal
ainda
a tua ordem
enquanto montado no vento
não chega o fim da noite!

... e a rosa imaginária
que vou dar ao meu amor...



António Cardoso

Quando eu morrer




















Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.




Alexandre Daskalos
Poesias, 1961

Irrecusável percurso



















Longe e indistintas já, no areal
as pegadas iniciam o percurso:
impetuosas e fundas apontam ao mar,
inaudível ainda e sem prenúncio de iodo.

Fundas e rudes, as pegadas cantavam
um rosto radioso e um corpo ainda nu
de quem mantinha os olhos desatentos
às dunas, aos barcos e aos pássaros
e nem imaginava possível o mar.

Agora, o salitre amolda as marcas,
frágeis de pés vagarosos e relutantes
e um fio de neblina turva o olhar
de quem vê e acaricia barcos e pássaros
e sabe o mar em frente e à espera.

De nada serve rodar a cabeça
ou recusar-se ao percurso já alto:
ali, na fímbria das ondas, o mar
é destino e espera, paciente e implacável.



Fernando Couto

Canto [te]

Quero cantar-te todos os pássaros do céu
e todas as borboletas do canteiro
Onde brotam as flores que cultivamos juntos.
Quero cantar-te todas as ondas do mar
e todas as dunas que cresceram sobre nós
Quando dormimos na praia nus e saciados.
Quero cantar-te sem palavras supérfluas
todas as odes ao amor de todos os poetas
Que por ele morreram.
E ao adormeceres ao som do meu canto
que o teu sonho se não distinga
da minha realidade futura.



Maria Branco


A gravação do rosto



























Na superfície branca do deserto
na atmosfera ocre das distâncias
no verde breve da chuva de Novembro
deixei gravado meu rosto
minha mão
minha vontade e meu esperma;
prendi aos montes os gestos da entrega
cumpri as trajectórias do encontro
gravei nas águas a fúria da conquista
da devolução do amor.

Os calcários e os granitos desta terra
foram por mim pesados.
Dei-lhes afagos
leves olhares
insónias longas
impacientes esperas.

O zinco dos telhados cobriu-me solidões
e esperanças que tu sabes.

Esperei por ti
Bordei-te flores nos canteiros do céu
abri-te valas, semeei-te milhos
pari colheitas de searas vãs
abri os dedos, semeei calhaus.

Espremi a terra e fiz-lhe água nascente
povoei prados de criaturas doces
ergui torres, girassóis gigantes
dei vida e morte, vi nascer, morrer.

Aqui reinei, julguei, plantei videiras
caminhos, grutas de vestígios
colhi olhares de animais bravios
deixei aos dedos aladas liberdades.

Empilhei madrugadas de atenção
disparei molas, carabinas frias
de traição ao vento.
Combati silêncios, instalei trincheiras
de perdão. Recebi recados de mongólias vastas
acendi fogueiras
para sufocar o medo.

Aqui sonhei europas, verdes ásias
cidades de cristais, antárdidas caiadas
daqui refiz a lua de astronautas;
contei estrelas colhi algumas
para dormir com elas.

Aqui ejaculei delírios verdes
que a madrugada insinua e vence.
Aqui colhi primícias de virgens escandinavas
e coroei outeiros e o meu sexo
com as suas tranças de ouro.

Saltei de monte em monte
e naveguei o ventre do deserto
assinalei o umbigo do mundo e plantei setas
apontando o sexo fundo da terra.
Beijei a carne universal e húmida de uma fêmea em cio,
menstruada.

Aqui me dei, aqui me fiz
desfiz, refiz amores.
Aqui me embebedei e vomitei o espanto.

Daqui abalo hoje, parido para o nada
apalpo a água
afago um bicho
ordeno qualquer coisa
e vou.



Ruy Duarte de Carvalho

Quando?





















Imagem da Página Pessoal de Carlos Pires



Quando passearemos de mãos enlaçadas sob as árvores?
E parados face a face
com o abraço subindo, lento e envolvente,
da cintura ao peito e aos ombros...
Quero sentir-te estremecer da terna expectativa,
bem junto a mim, do desejar não querendo,
vendo nos teus olhos o contrário do que a tua boca fala.
Pois te digo: gosto por demais de ti para me render
ao trágico significado da verdade do que dizes.
Repete, repete à exaustão a recusa suprema.
Não adianta , meu amor!
Até à morte, serão somente palavras que não desfazem a ilusão.
Só após ela se tornarão numa realidade que então não terá mais importância.




Maria Branco

Ritmos do meu povo




















Segui brechas sombrias de ritmos
sulcadas na mbila dum povo alegre
segui flautas, frémitos, pausas, silêncios...
timbres de vozes inchadas de vertigem
segui célere,
ritmos do meu povo
timbres de vozes isoladas
e no verso,
um povo cruzado em favos.

Segui brechas sombrias de ritmos
no instinto e na origem
timbres do meu povo
segui vísceras,
no ventre duma lágrima
ténue, e devagar...
Ritmos do meu povo

Segui brechas sombrias de ritmos
e nos escombros da vida dum solo
encontrei uma palavra,
encontrei uma penumbra
dum menino alegre colorido de lágrimas
com um tambor de nada ás costas
baquetas de ferro em punho e carnívoras
naquele menino da pátria feliz!
naquele menino feliz cruzado de sonhos!
naquele menino feliz pousado de canto e que canta!
Ritmos do meu povo,
segui brechas sombrias de ritmos.




Noé Filimão Massango

Se da poesia nascessem...















Se da poesia nascessem
Rios caudalosos
E colinas verdes
Se fosse ao menos a poesia
Uma madrugada
Na minha terra enublada
Ou mandiocais
Ou letras no cais
Do meu sonho
Ou letras no colóquio
Das sombras que me habitam...


Se poesia ontem cantei
Hoje das minhas mãos nascem pedras
Das minhas mãos trémulas nascem pétalas
E não há rios caudalosos
Nem florestas frondosas
Apenas poesia que desconheço
No cristal húmido dos dias...


Apenas poesia que desconheço
Sem mandiocais
Ou letras no cais
Do meu sonho e cansaço...



Cristóvão Luís Neto

A rosa de Hiroxima


















Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.


Vinícius de Moraes





Ney Matogrosso

Regresso




















Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...

Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde magestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o humus vivificante
do teu solo encerra!

Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...

Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monotono, igual,
do casario plano...

Hei-de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...

Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruidos...

os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo

Sede...Tenho sede dos crepusculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...

Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçõeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...

Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acacias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
Voltei!...



Alda Lara

Lixo
























Dois vizinhos encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam:

— Bom dia...
— Bom dia.
— A senhora é do 610.
— E o senhor do 612.
— É.
— Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
— Pois é...
— Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
— O meu quê?
— O seu lixo.
— Ah...
— Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
— Na verdade sou só eu.
— Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
— É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
— Entendo.
— A senhora também...
— Me chame de você.
— Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
— É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes.
Mas como moro sozinha, às vezes sobra...
— A senhora... Você não tem família?
— Tenho, mas não aqui.
— No Espírito Santo.
— Como é que você sabe?
— Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
— É. Mamãe escreve todas as semanas.
— Ela é professora?
— Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
— Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
— O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
— Pois é...
— No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
— É.
— Más notícias?
— Meu pai. Morreu.
— Sinto muito.
— Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
— Foi por isso que você recomeçou a fumar?
— Como é que você sabe?
— De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
— É verdade. Mas consegui parar outra vez.
— Eu, graças a Deus, nunca fumei.
— Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
— Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
— Você brigou com o namorado, certo?
— Isso você também descobriu no lixo?
— Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.Depois, muito lenço de papel.
— E, chorei bastante. Mas já passou.
— Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
— É que eu estou com um pouco de coriza.
— Ah.
— Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
— É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
— Namorada?
— Não.
— Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo.Até bonitinha.
— Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
— Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo,
você quer que ela volte.
— Você já está analisando o meu lixo!
— Não posso negar que o seu lixo me interessou.
— Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
— Não! Você viu meus poemas?
— Vi e gostei muito.
— Mas são muito ruins!
— Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
— Se eu soubesse que você ia ler...
— Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
— Acho que não. Lixo é domínio público.
— Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público.O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
— Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
— Ontem, no seu lixo..
— O quê?
— Me enganei, ou eram cascas de camarão?
— Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
— Eu adoro camarão.
— Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente
pode...
— Jantar juntos?
— É.
— Não quero dar trabalho.
— Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha.
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?






Luis Fernando Veríssimo

Che Guevara
















Imagem de Raim, do seu extraordinário blog, aqui





Contra ti se ergue a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece



Sofia de Mello Breyner Andresen