Viagem


















Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...

(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.



Miguel Torga

Comunicação amorosa

















À jacto
quero entregar-te
o meu zambeze
esperançado
no jeito
carinhoso
acolhedor
do teu mar, amor!



Domi Chirongo

What a wonderful world

Poemas de dôr, de sofrimento, de opressão... poemas de 24 de Abril.























Poema quarto de um canto de acusação



Há sobre a terra 50 000 mortos que ninguém chorou
sobre a terra
insepultos
50 000 mortos
que ninguém chorou.

Mil Guernicas e a palavra dos pincéis de Orozco e de

Siqueiros
do tamanho do mar este silêncio
espalhado sobre a terra

como se chuvas chovessem sangue
como se os cabelos rudes fossem capim de muitos
metros
como se as bocas condenassem
no preciso instante das suas 50 000 mortes
todos os vivos da terra.

Há sobre a terra 50 000 mortos
que ninguém chorou

ninguém...

As Mães de Angola
caíram com seus filhos.



Costa Andrade
















O Último Adeus Dum Combatente


Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que eu parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!



Vasco Cabral





















Pecado original



Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...



Corsino Fortes


















Milagre obstétrico



As lampadas da cidade
fundiram-se todas

e numa das esquinas
da grande aldeia de cimento
um latão urbanizado
pariu um pirilampo...

Glória ao novo ser
que nasceu ao anoitecer.

O jornal não deu a grande notícia
- os fotografos tinham as máquinas
aguardando o plano superior.

Contudo
no velho latão urbanizado
o pirilampo brinca e chora
(como alguns meninos)
luzindo com o satírico brilho
da esvaziada lata de sardinhas
da "ração de combate".



António Pinto de Abreu



















Serviçais



O aroma dos mamoeiros
desde a grota.
Os moleques sonham cazumbis
nas lajes do secador.
Lenta, a narrativa
dos serviçais sentados
no limiar da esperança
é palanca negra a derrubar
paliçadas e fronteiras,
palanca a devorar a distância,
a regressar a Angola,
aos muxitos do Sul;
é chuva grossa
empapando os campos de Cabo Verde
a germinar o milho da certeza.

Trazem na pele tatuada
a hierarquia das relíquias
alimentando-se de um sangue
desprezado
que elege os magistrados
da morte.
Amanhã os clamores da resta
acordarão as longas avenidas
de braços viris
e a terra do Sul
será de novo funda e fresca
e será de novo sabe
a terra seca de Cabo Verde,
livres enfim os homens
e a terra dos homens.



Maria Manuela Margarido



















Poema Ancestral


Lembra os dias antigos
Em que cantavas a pureza
Na nudez dos teus passos e gestos
Ou dançavas na inocente vaidade
Ao som dos «babadok».
Relembra as trevas da tua inquietação
E o silêncio das tuas expectativas,
As chuvas, as memórias heróicas,
Os milagres telúricos,
Os fantasmas e os temores.
Tenta lembrar a herança milenar dos teus avós
Traduzida em sabedoria
E verdade de todos.
Recorda a festa das colheitas,
A harmonia dos teus Ritos,
A lição antiga da liberdade,
Filha da natureza.
Recorda a tua fé guerreira,
A lealdade,
E a ternura do teu lar sem limites,
Nos caminhos do inesperado
Ou no improviso da partilha definitiva.
Lembra pela última vez
Que a história da tua ancestralidade
É a história da tua Terra Mãe...



Crisódio T. Araújo























A Portugal



Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não





Jorge de Sena

Gosto de te ver assim vestida
























Gosto de te ver assim
vestida
com a túnica e o manto
a envolver-te o corpo todo.
Assim te vejo, sempre
que te recordo nas ausências,
quando me apetece despir-te
lentamente
recolhendo as dobras e as pregas
desapertando o alfinete de prata
deixando cair tudo a teus pés
e ver o esplendor
da tua nítida nudez…



Alexandre de Castro

Vida tão estranha





São de veludo as palavras
Daquele que finge que ama
Ao desengano levo a vida
A sorte a mim já não me chama

Vida tão só
Vida tão estranha
Meu coração tão mal tratado
Já nem chorar me traz consolo
Resta-me só o triste fado

A gente vive na mentira
Já nem dá conta do que sente
Antes sozinha toda a vida
Que ter um coração que mente


Rodrigo Leão

Nem sempre foi assim…
























Nem sempre foi assim
quando tudo entre nós ficava branco
tu passavas o tempo nas minhas mãos


a contar os barcos que saíam para o mar
e gostavas de imaginar outros horizontes
a vida está sempre a mudar, dizias-me,
e eu sabia que nada mais te poderia dar
além do quarto alugado onde dormíamos.



Alexandre de Castro

A última marrabenta
















Quando o chão
estiver bem longe
terei sonhado
bem alto
e quando
o sorriso
forçar tua mão
a pousar em mim
estaremos no altar, baby
no altar
marrabentando o palco
como nunca o
fizemos,
quando o chão
estiver bem longe
a felicidade
será a dois
e depois o futuro
outro choro
reprodução
de nós mesmos

Quando o chão
estiver bem longe
terei sonhado
bem alto
e quando
o sorriso
forçar tua mão
a pousar em mim
estaremos no altar, baby
no altar
marrabentando o palco
como nunca o
fizemos,
quando o chão
estiver bem longe
a felicidade
será a dois
e depois o futuro
outro choro
reprodução
de nós mesmos.



Domi Chirongo

AmARTE
























"Red nude" de Marc Chagal




Quero
amar-te
diante
desta luz
lunar
fora
do marte
num’aldeia
de laranjeira
sem herói
nem mártir.


Domi Chirongo



Socopé


















Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra do ocâ,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do socopé,
os pés-raizes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia de liberdade.



Maria Mauela Margarido

Sempre mar


















Cabo Ledo, Julho de 1996




Mar vezes quando o sol nos enche os olhos
e no promete mais vezes no olhar
fecham-se os olhos no rolar do tempo
de ver andar o antes e o depois
numa miragem que se chama mar
Mar prometendo mais vezes de vermelho
luz transformada num redondo
esquivo
um sol de devagar como descendo
da guerra sem estrondo
na lúcida mutação
de sempre mar.

E a tarde é todo um fim
um beijo tão molhado despenteado
como uma boca a tua boca à beira-
mar depois das ondas e diferentes
princípio de um começo como a noite
antes de o sol se adormecer aquático
formam-se linhas como os pensamentos
linhas carícias que nos fazem ver
que entre os passos da areia e os nossos movimentos
há sempre um pôr-do-sol
de um sol para nascer.



Manuel Rui

Carta para um amor



















Cidade!,
nunca fui mais longe do que
à raia de Espanha.
Creio amar Paris,
conheço Paris dos filmes, a Concórdia
dos postais, a Torre Eiffel divulgada,
Hitler passando sob o Arco do Triunfo.
Amo Paris em Aragon e Eluard,
Paris dos pintores, Paris de Erenburgo.
Amo outras cidades, todas as grandes
cidades.
Madrid dos espanhóis e do coração despedaçado,
Stalinegrado das batalhas, Berlim do triunfo.
Nunca fui às grandes cidades,
amo-as porque os homens mas ensinaram
a amar.
Conheço Lisboa grande e colorida,
longe dos meus sentidos
e Johannesburg do ouro e do pó.
Nunca fui a New York ou São Paulo
do Brasil.
Chicago, Los Angeles, Londres,
Moscou, Rio, não conheço,
não conheço as grandes cidades,
que as há,
do estado de Massachusetts
ou da beira do Nilo.

Cidade!,
amo em retórica discursiva
as outras cidades.
Das viagens que tenho feito,
por rotas tão diferentes,
és sempre a meta, cidade que amo
desde sempre,
- para lá dos poetas, dos pintores,
dos filmes e da retórica discursiva.
Os nossos companheiros tiveram
a coragem de partir,
vivem nas grandes cidades, com história,
do mundo,
eu fui covarde e fiquei.
Experimentei, e não soube, viver longe de ti
noutras cidades.
Sei que este meu amor é a minha mediocridade
também,
a mediocridade de quem não teve asas
para subir mais alto
e orgulho, o orgulho que nada venceu,
nem o ser estranho na própria terra.
É uma ternura que escorre
das tuas tranquilas avenidas de acácias
e jacarandás,
dos claros prédios,
da população colorida,
da mansitude da baía,
do teu ar de provinciana janota.
Cidade, menina fútil
de pouca história,
carros pequenos nas ruas,
velas na baía, patinadores nos ringues,
terra de sete estuários,
de cinemas e cafés buliçosos,
de alegrias e pequenas traições,
leviana, ingénua, snob, bonita,
mulata, branca,
hindu, negra,
de cabelos louros e olhos amendoados,
morena sensual,
terra índica, minha terra,
minha amada inocente, prostituída.

Amo-te cidade da infância,
com girassóis e casa de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.
As quadrilhas de arco, flecha e pistola
de fulminantes,
os esconderijos da barreira,
o sexo e as coxas morenas de Xila,
a Sete de Março da política e dos antigos cafés,
a tristeza verde-negra do Enes,
o paço do senhor bispo
e S. Navio todos os meses.

Quebrou-se esse velho espanto
e nossos companheiros
tiveram a coragem
de partir para outras cidades,
com história, do mundo
(Para eles tua lembrança é
fugitiva mágoa).
Só,
eu fiquei abraçado a este amor anónimo.



Rui Knopfli

Cântico negro













Cago na juventude e na contestação
e também me cago em Jean-Luc Godard.
Minha alma é um gabinete secreto
e murado à prova de som
e de Mao-Tsé-Tung. Pelas paredes
nem uma só gravura de Lichtenstein
ou Warhol. Nas prateleiras
entre livros bafientos e descoloridos
não encontrareis decerto os nomes
de Marcuse e Cohn-Bendit. Nebulosos
volumes de qualquer filósofo
maldito, vários poetas graves
e solenes, recrutados entre chineses
do período T'ang, isabelinos,
arcaicos, renascentistas, protonotários
- esses abundam. De pop apenas
o saltar da rolha na garrafa
de verdasco. Porque eu teimo,
recuso e não alinho. Sou só.
Não parcialmente, mas rigorosamente
só, anomalia desértica em plena leiva.
Não entro na forma, não acerto o passo,
não submeto a dureza agreste do que escrevo
ao sabor da maioria. Prefiro as minorias.
De alguns. De poucos. De um só se necessário
for. Tenho esperança porém; um dia
compreendereis o significado profundo da minha
originalidade: I am really the Underground.



Rui Knopfli

Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos




















Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
no olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos
sexos das mães, afogavam-se em lama, no meio dos
sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os
oleiros desistiram de encomendar a sua obra a Deus.
Enormes cuidados foram inventados para proteger o fogo
nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em
chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas,
colavam-se aos dedos como cinza húmida. Os lábios dos
sexos das mulheres paridas inchavam carnudos de uma
carne branca e os ventres pendiam como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderam todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do
Jau ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe
os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos
celeiros e essa semente assim era servida aos homens e
daí lhes ocorreu um tal vigor que os seus pénis cresceram
desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e
mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos
buracos e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo
com esforço as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite
vicejaram musgos e o leite das vacas alterou-se em soro, a
coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que
até nos areais cresceram talos e as enxurradas
produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os
diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer
farinha. As próprias aves morreram quase todas e apenas
se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.
E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu
todo o sentido. As gargantas entupiram-se de limos
e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os
corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando
mais tarde a chuva parou, das bocas saíram grossas
aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a
seca voltou e o mundo secou. A carne antiga a dar-se
agora em terra, os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido.



Ruy Duarte de Carvalho

In “Sinais misteriosos... Já se vê...”