A Espera de Ti



















Foto de Alexander Orlov




Por agora,
deixa os sinos do teu corpo
tocarem todos,
deixa a vaga de vento
te levar para as portas do céu.

Poisa levemente os pés
na lã dos caminhos e
vai segura pela minha mão
que voltarás ao amanhecer

com as águas das montanhas
entre o coaxar das rãs
saindo do teu peito.

Os dias serão maduros
de azul, cânticos de amor e pão.

Haverá mel nos lábios
e em todas as esquinas
estarei
à espera de ti!



E. Bonavena

Era uma vez o 25 de Abril





Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher: - 0 Fafe telefonou de Cascais,… Lisboa está cercada por tropas… Refilo, rabugento: - Hã? E enrolo-me mais nos lençóis: - É algum golpe militar reaccionário dos «ultras»… Deixa-me dormir. Mas qualquer coisa começou a magoar-me a pele com dentes frios, para me dissuadir de adormecer. E daí a instantes a minha mulher insistiu, baixinho, muito baixinho, com medo de não haver realidade: -Só funciona o Rádio Clube que pede às pessoas que se conservem em casa.

Golpe militar? Reaccionário, evidentemente. Como se poderia conceber outra coisa? Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem, um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte. Agora é o Carlos de Oliveira. -Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa? Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso. Ás oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro: - Aqui, Posto de Comando das forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue. De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. O olhar para o aparelho. Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice! A Rosália chama-me, nervosa: - Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço: -Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal! Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos! Trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo).

São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem! Ou tudo ruÍrá de podre, sem o brandir de uma bandeira qualquer de, heroísmo, um berro, um suicídio, um brado? Nas ruas (avisto da janela da sala de jantar) as mulheres, correm com sacos de alimentos. A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório». Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena… Terra da fraternidade… 0 povo é quem mais ordena… Sinto os olhos a desfazerem-se
em lágrimas. Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo nunca vivi horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas, medíocres, sem lances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções?… Interrogo-me.
Em silêncio. Sem teatro por fora.
Em segredo. Com pantufas. De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nomeado General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»). Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! Acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.

A Maria Keil teIefonou. 0 Chico, está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! … ) Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias. Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos… alguns torturados durante dias e noites sem fim…. não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança. E o telefone toca, toca, toca… Juntámos as vozes na mesma alegria. (Só é pena que os mortos não nos possam também telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo de Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos… Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas, cravadas, nas palmas das mãos… De repente, estremeço, aterrado. Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil? Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos. Revolução.




José Gomes Ferreira

O fio da vida



















Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não crêem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.




Rui Knopfli

O peso da vida



















O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.



Eduardo White
In "O pais de mim"

Poesia?






















Poema?
drama?
trama?
teia
veia
clama
reclama.
Exagerada?
determinada?
intensa.
Estática?
fanática?
adolescência?
maturescência
insensatez?
impermanência?
raiva?
rima
afina
a alma
harmoniza
fervilha
o corpo
reflete
a mente
aquieta
os hormônios
deixe fluir
sabor
calor
beije
volte
aposte
durma
sonhe
acorde
abrace
olhe
toque
rastreie
escritos
deixados
leia!



Jucimara Gouvêa

Nu sentado



















Foto de Kadart, via "O Jumento"





Trazida à cozinha pela fome da insónia

essa mulher que chora cavalga os saltos altos
alheia nua à dimensão que tem
quando atravessa a sala e impõe o aprumo
da carne e a força do porte que ostenta.

Quando lhe vi assim de madrugada
nua e sentada
bebendo o leite e a chorar à toa
disse para mim, já dado:

- à noite, sempre, é quando mais magoa



Ruy Duarte de Carvalho

Finalmente a verdade



















Óleo de Gerhard Richter, aqui




Estava linda e purpurina
Saciando a fome e sede à solidão,
Quando de entre as mãos sujas,
Do Carteiro amarfanhado,
Estremeci ao tocar na mensagem
Vinda dos roseirais.

Mandaram-me os delírios da discórdia,
Os insultos de paixões sovinas egoístas.
Mandaram-me o corpo e
A mulher negra tão amada.
Mandaram-me o filho,
Por mim mal parido.

Lágrimas correram ao ter nas mãos
A mensagem que não tinha,
O cheiro doce dos roseirais,
Nem a cor mimosa das flores sensuais.

Continha, sim, finalmente a verdade;
Das epopeias de um amor repudiado.

Faltava pouco amor,
Para te encontrar então nas esquinas
Mais queridas das cidades,
Que em múltiplos orgasmos imorais,
Naufragávamos juntos para além,
Além dos roseirais!




Ana Maria Branco

Oração de São Francisco de Assis


























Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, Fazei que eu procure mais
Consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.













Joe John Daniel
Loneliness

Um homem nunca chora



























Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!



José Craveirinha

O meu amor

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By Cacusso









num bairro pertinho do meu
numa rua estreita e sem nome
mora o homem dos meus sonhos
com quem hei-de um dia casar

a rua, que não tem nome,
morre no largo junto à fonte
onde também existe um banco
onde com ele me hei-de sentar
a casa onde mora é pequenina
como a dos contos de encantar
e tem uma janela amarela
para podermos namorar

quando passo na sua rua
o meu peito bate bem forte
os meus ouvidos ficam alerta
para o seu coração escutar

ele não sabe quem sou
nem sequer como me chamo
olha-me sem me ver
e nem consegue imaginar
que comigo se há-de casar
por via de algum milagre
ou tão somente e apenas
sonho feito realidade




Anny Pereira

Minha Poesia


















Dá-me a tua luz
A verdade do olhar
Não é mal nenhum escrever meu nome
Não é mal nenhum escrever poesia
Não é mal nenhum escrever teu nome
Não é mal nenhum escrever liberdade
A paz
O amor
A bondade
A mansidão
A temperança
Dá-me a tua luz
A verdade do teu olhar
Onde vai a poesia?
Onde pára a poesia?
Se a sinceridade e a poesia dói, isto é
Escrever um poema.



Alice Palmira

Coisas da vida...





















Na vida as coisas são assim: Fala-se e ouve o que não quer; Bate de um lado e apanha do outro; Sofre pela infâmia cometida no passado; Perde o que nunca se ganhou, por alguma atitude brusca; Lamenta-se pelo não dito; Arrepende-se pelo que não fez; Sente remorsos pela covardia; Alia-se a si mesmo e aí reclama.. lamenta.. chora em vão, sabendo que tudo na vida é reflexo do que fazemos.



Lu Rosário, aqui

What's up?




















Que fez
você?
Desfez?
refez?
perdoou?
perdeu?
encontrou?
herdou?
sorriu?
amou?
odiou?
carregou?
se culpou?
cruxificou?
doeu?
foi bom?
ruim???
desata.
Ata!
Quem?
falou?
você?
eu?
o outro?
pra quem?
pra mim?
pra que?
aja!
Seja!
Ria
chore
sinta!
Desfeito?
feito?
amarre
perdido?
na estrada?
vazia
cheia
de amor?
foi?
se foi?
é?
passou?
está?
será?
responda
não esconda
não cale
fale
o que?
te espero?
encontro?
marcado?
traçado?
quem disse?
que
quero?
espero...
saber?



Jucimara Gouvêa

Pausa

























Nesta noite luarenta, lenta
de silêncio é a minha alma
a luz que é imensa, cansa
o silêncio é a minha alma!

Nesta noite luarenta, lenta
peço uma trégua: uma légua
sem raciocínios, ígneos
a chapinhar o silêncio d’água!

Nesta noite luarenta, lenta
peço uma pausa: uma causa
para os resquícios da poesia
nos interstícios da minha alma!



Cristóvão Luís Neto