A esfera desce do espaço veloz ele a apara no peito e a pára no ar depois com o joelho a dispõe a meia altura onde iluminada a esfera espera o chute que num relâmpago a dispara na direção do nosso coração.
DA LUA VERMELHA E DA LUZ ESVERDEADA Na noite fria, o vento passando pelas gretas da porta, assoviando como a tosse da mãe, dolorosa tosse.
A morte rondando a cidade, à bala e à fome, armas constantes apontadas sobre o morro.
Os irmãos, todos os nove, dormem abraçados e seminus. O cobertor não dá para todos, os menores sofrem mais, descobertos.
A irmã mais velha, barriga grande, esperando mais um para completar a dezena, mas desta vez outra geração será inaugurada.
Nova geração, miséria antiga, fome constante.
A garrafa de cachaça pela metade denuncia que o pai está em casa. Ainda bem.
O pai em casa, coisa rara, é sinal de comida amanhã.
O arroz e o feijão no prato, minguado prato do dia-a-dia, poderia com certeza estar acompanhado de algo mais, quem sabe um naco de carne ou de frango.
Vida dura, durando muito para quem mais teima que vive.
Barriga d’água, cheia das lombrigas de sempre, os cabelos amarelados pela fome, contrastando com as pernas finas, perebentas.
O cheiro podre de vala e de suor, misturados no único cômodo do barraco.
A porta parcialmente trancada, a tramela não adiantava mais.
A polícia, na última vez que viera nada encontrara, mas a porta não resistira.
Os pontapés assustaram, ninguém sabia dizer por que tinha que ser assim.
A mãe tuberculosa, a cada dia ia minguando. Remédio até que tomava, mas a comida pouca; amor de mãe é fogo, das parcas colheres, nada colhia. Alimentar os meninos.
A morte talvez resolvesse os problemas. Mas a luta era diária e o medo maior que tudo. Agora ia ser avó, precocemente envelhecida, os trinta anos batendo na porta. A filha de treze agora era duas.
A magreza dos meninos assustava.
Os meninos, ao revirar o lixo, muitas vezes se saciavam com as podres delícias.
Um dia, o mais velho encontrara um lote de iogurte vencido. Delicioso, coisa de rico.
Como poderia esperar algo, além disso?
Invejara, muitas vezes, os urubus. Esses tinham colheita certa e comida abundante.
Num local onde a morte é lugar comum; fartura de alimento somente para eles.
O rosto dos meninos, sem direção, sem nexo nem sentido, denunciava a luta voraz destes para chegar o dia seguinte, e assim por diante.
Ano passado, quase que o Mariozinho morreu. Não fossem as rezas da vizinha, adeus!
Comida, saúde, escola, essas coisas que todo mundo promete, ilusão.
A fome é cruel, muito cruel. Não se pode falar de fome se não a conhecer.
Não é essa fome de madame querendo emagrecer ou a ocasional, a de um dia, não.
A fome de uma vida, de uma vida após outra vida, nessa semi-morte que arrasta a todos para o lixão.
Outro dia, sem que ninguém soubesse por que, o dono do morro pediu a casa “emprestada” para esconder uns camaradas que vieram de outra favela. Fazer o quê?
Levaram o rádio de pilha e a televisão, últimos contatos com a vida no asfalto.
É difícil essa vida entre o bem e o mal, entre a polícia que quebra a porta e o traficante que leva a televisão.
Fazer o quê?
Voltar para Minas, uma boa idéia, mas cadê Minas?
A fome na roça também era terrível. Aqui pelo menos tem o lixão. A comida é mais farta, embora rala.
Sua mãe tivera quinze, sobraram quatro. Dos quatro era a mais velha.
Pelo que soube dos outros três, um estava preso, a menina caiu na vida e o outro enlouquecera, o sortudo.
A mãe morreu ano passado. Da velhice que carrega aos 50 depois de ter morado mais de 20 nas costas do cidadão.
Marido bom até que era, batia pouco, bebia muito.
De vez em quando sumia. Falam que tem outra, a velhice precoce a tornara feia.
A outra deveria ter a carne ainda dura, os peitos mais rijos e os dentes na boca.
Além de tudo, não devia estar tísica. Danada dessa tosse, dessa febre, o sangue espalhara no colchão tantas vezes que colorira de vermelho o amarelado do mijo das crianças.
Emagrecendo e se esvaindo, o frio daquela noite estava de lascar.
A tosse de Joãozinho estava denunciando que a tísica estava criando raízes no barracão.
Levar para o médico, marcar ficha, mês que vem se ainda estiver vivo ou se não tiver curado.
Curado?! Doce ilusão, mais fácil ter morrido que se curar.
Joãozinho, menino sempre foi fraco dos peitos, ao contrário da mais velha, peitos grandes para os treze anos. Agorinha mesmo mais um. Depois outro, outro... contagem mórbida, triste...
O silêncio da noite é interrompido pelas balas, balas e mais balas.
As balas de confeito estão nos sonhos dos meninos, a de aço perfura as paredes de zinco e de compensado. Barraco todo furado, chuva traz lama e goteiras. Vida complicada.
O marido está sobre ela, as pernas confundidas depois de uma noite de sexo. Coisa que foi boa, hoje suplício. É melhor que ele fique com a outra.
As costas doem muito e o prazer é impossível. Tem que fazer preventivo.
As doenças do mundo estão brigando por espaço pra poderem crescer no corpo miúdo. A mãe do corpo está toda sangrante, numa eterna regra.
De repente, percebe que as balas estão mais fortes que sempre.
Um barulho arromba a porta. O namorado da filha, menino ainda, entra na casa.
Transtornado pela cocaína e pelo álcool.
As balas se aproximam e procuram lugar macio. Barriga grávida, local macio. Fácil de entrar, penetram, abortando o futuro e o presente. De uma vez só.
Quem sabe foi melhor assim?
O companheiro se levanta e xingando o namorado da menina morta, empurra-o para a saída. Saída do barraco. Saída da vida, saída.
Mal sabe ele que não há mais saída.
Mas a teimosia, logo o dia nasce, o corpo sepultado, a teimosia sobrevive.
No céu, uma lua avermelhada a tudo assiste, e comovida abraça todo o barraco, inundando o barraco, a favela, a cidade e o país com uma estranha luz esverdeada e avermelhada.
Quem sabe essa seja a saída?
Uma lua vermelha, uma luz esverdeada e um brilho descomunal sobre tudo e sobre todos...
DA LUA VERMELHA E DA LUZ ESVERDEADA
Na noite fria, o vento passando pelas gretas da porta, assoviando como a tosse da mãe, dolorosa tosse.
A morte rondando a cidade, à bala e à fome, armas constantes apontadas sobre o morro.
Os irmãos, todos os nove, dormem abraçados e seminus. O cobertor não dá para todos, os menores sofrem mais, descobertos.
A irmã mais velha, barriga grande, esperando mais um para completar a dezena, mas desta vez outra geração será inaugurada.
Nova geração, miséria antiga, fome constante.
A garrafa de cachaça pela metade denuncia que o pai está em casa. Ainda bem.
O pai em casa, coisa rara, é sinal de comida amanhã.
O arroz e o feijão no prato, minguado prato do dia-a-dia, poderia com certeza estar acompanhado de algo mais, quem sabe um naco de carne ou de frango.
Vida dura, durando muito para quem mais teima que vive.
Barriga d’água, cheia das lombrigas de sempre, os cabelos amarelados pela fome, contrastando com as pernas finas, perebentas.
O cheiro podre de vala e de suor, misturados no único cômodo do barraco.
A porta parcialmente trancada, a tramela não adiantava mais.
A polícia, na última vez que viera nada encontrara, mas a porta não resistira.
Os pontapés assustaram, ninguém sabia dizer por que tinha que ser assim.
A mãe tuberculosa, a cada dia ia minguando. Remédio até que tomava, mas a comida pouca; amor de mãe é fogo, das parcas colheres, nada colhia. Alimentar os meninos.
A morte talvez resolvesse os problemas. Mas a luta era diária e o medo maior que tudo. Agora ia ser avó, precocemente envelhecida, os trinta anos batendo na porta. A filha de treze agora era duas.
A magreza dos meninos assustava.
Os meninos, ao revirar o lixo, muitas vezes se saciavam com as podres delícias.
Um dia, o mais velho encontrara um lote de iogurte vencido. Delicioso, coisa de rico.
Como poderia esperar algo, além disso?
Invejara, muitas vezes, os urubus. Esses tinham colheita certa e comida abundante.
Num local onde a morte é lugar comum; fartura de alimento somente para eles.
O rosto dos meninos, sem direção, sem nexo nem sentido, denunciava a luta voraz destes para chegar o dia seguinte, e assim por diante.
Ano passado, quase que o Mariozinho morreu. Não fossem as rezas da vizinha, adeus!
Comida, saúde, escola, essas coisas que todo mundo promete, ilusão.
A fome é cruel, muito cruel. Não se pode falar de fome se não a conhecer.
Não é essa fome de madame querendo emagrecer ou a ocasional, a de um dia, não.
A fome de uma vida, de uma vida após outra vida, nessa semi-morte que arrasta a todos para o lixão.
Outro dia, sem que ninguém soubesse por que, o dono do morro pediu a casa “emprestada” para esconder uns camaradas que vieram de outra favela. Fazer o quê?
Levaram o rádio de pilha e a televisão, últimos contatos com a vida no asfalto.
É difícil essa vida entre o bem e o mal, entre a polícia que quebra a porta e o traficante que leva a televisão.
Fazer o quê?
Voltar para Minas, uma boa idéia, mas cadê Minas?
A fome na roça também era terrível. Aqui pelo menos tem o lixão. A comida é mais farta, embora rala.
Sua mãe tivera quinze, sobraram quatro. Dos quatro era a mais velha.
Pelo que soube dos outros três, um estava preso, a menina caiu na vida e o outro enlouquecera, o sortudo.
A mãe morreu ano passado. Da velhice que carrega aos 50 depois de ter morado mais de 20 nas costas do cidadão.
Marido bom até que era, batia pouco, bebia muito.
De vez em quando sumia. Falam que tem outra, a velhice precoce a tornara feia.
A outra deveria ter a carne ainda dura, os peitos mais rijos e os dentes na boca.
Além de tudo, não devia estar tísica. Danada dessa tosse, dessa febre, o sangue espalhara no colchão tantas vezes que colorira de vermelho o amarelado do mijo das crianças.
Emagrecendo e se esvaindo, o frio daquela noite estava de lascar.
A tosse de Joãozinho estava denunciando que a tísica estava criando raízes no barracão.
Levar para o médico, marcar ficha, mês que vem se ainda estiver vivo ou se não tiver curado.
Curado?! Doce ilusão, mais fácil ter morrido que se curar.
Joãozinho, menino sempre foi fraco dos peitos, ao contrário da mais velha, peitos grandes para os treze anos. Agorinha mesmo mais um. Depois outro, outro... contagem mórbida, triste...
O silêncio da noite é interrompido pelas balas, balas e mais balas.
As balas de confeito estão nos sonhos dos meninos, a de aço perfura as paredes de zinco e de compensado. Barraco todo furado, chuva traz lama e goteiras. Vida complicada.
O marido está sobre ela, as pernas confundidas depois de uma noite de sexo. Coisa que foi boa, hoje suplício. É melhor que ele fique com a outra.
As costas doem muito e o prazer é impossível. Tem que fazer preventivo.
As doenças do mundo estão brigando por espaço pra poderem crescer no corpo miúdo. A mãe do corpo está toda sangrante, numa eterna regra.
De repente, percebe que as balas estão mais fortes que sempre.
Um barulho arromba a porta. O namorado da filha, menino ainda, entra na casa.
Transtornado pela cocaína e pelo álcool.
As balas se aproximam e procuram lugar macio. Barriga grávida, local macio. Fácil de entrar, penetram, abortando o futuro e o presente. De uma vez só.
Quem sabe foi melhor assim?
O companheiro se levanta e xingando o namorado da menina morta, empurra-o para a saída. Saída do barraco. Saída da vida, saída.
Mal sabe ele que não há mais saída.
Mas a teimosia, logo o dia nasce, o corpo sepultado, a teimosia sobrevive.
No céu, uma lua avermelhada a tudo assiste, e comovida abraça todo o barraco, inundando o barraco, a favela, a cidade e o país com uma estranha luz esverdeada e avermelhada.
Quem sabe essa seja a saída?
Uma lua vermelha, uma luz esverdeada e um brilho descomunal sobre tudo e sobre todos...