Receita do português
sábado, setembro 29, 2007
Coloque uma vasilha dentro d’água. A massa só alcançará o ponto exato se os ingredientes forem misturados em recipiente mergulhado na água salgada. Senão, a receita desanda.
Ingredientes:
- Homens pré-históricos do vale do Tejo e do Sado.
-Um punhado de povos indigenas, principalmente Lusitanos. Se possível, da tribo liderada por Viriato.
- Celtas – apenas para polvilhar.
- Romanos.
- Bárbaros: Alanos caucasianos, Vândalos germânicos e escandinavos, Suevos e Visogodos germânicos - estes últimos dissolvidos na civilização romana.
- Mouros: tribos islamizadas do Marrocos e da Mauritânia.
- Uma pitada de árabes.
- Judeus sefarditas (ibéricos) – coloque um punhado entre um ingrediente e outro. Reserve a porção maior para o final da receita.
- Cristãos a gosto.
Modo de fazer:
Coloque na vasilha os pré-históricos. Dê preferência aos que apresentarem características físicas do português contemporâneo: estatura mediana e dolicocéfalos. A arqueologia prova que os pré-históricos ibéricos já se assemelhavam aos gajos pós-modernos – ora, pois.
Tampe a vasilha com um pano úmido. Espere-os fermentar até se transformarem em tribos pacíficas e receptivas à ondas migratórias oriundas de vários pontos europeus. Não se preocupe se alguns, sorrateiramente, fugirem pela borda da vasilha.
O ancestral do português já cultivava vocação viajeira, muitos chegaram à Inglaterra e à Normandia. Apenas oriente os neofujões para não tomarem o rumo de Brasília. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.
Polvilhe um pouco de Celtas. Além do charme, você vai introduzir o domínio da metalurgia e a vocação para o esoterismo. Afinal, quem não gosta de druídas? Além de estarem em moda, eles acrescentarão o toque exótico ao paladar do prato.
Lentamente, despeje os romanos. Atenção: vai sair pancadaria. Maneje com calma a colher de pau para driblar Viriato e outros caudilhos que não apreciarão o novo ingrediente. Cuidadosamente, misture os revoltosos, os romanos e as tribos que se lixaram para a invasão romana. No final, dará certo. É questão de paciência.
Bata levemente durante 500 anos. A massa crescerá e revelará um povo urbano, meio escravo/meio livre, que falava latim vulgar e sofisticou o comércio e a agricultura. Enfim, quase um luxo.
Introduza os Bárbaros. Primeiro os Alanos, Vândalos e Suevos. Capriche nos Suevos pois eles chegam para marcar presença: adoram trabalhar com enxadas e logo escolherão terras para cultivar. Por favor, convença-os a abandonar os instrumentos agrícolas às margens da vasilha. Alguém pode quebrar o dente quando o português for servido.
Descanse a colher de pau. Os romanos embolaram tanto o meio de campo que a turma abriu os braços para os novos conquistadores. Deixe a natureza agir. Você verá que, infiltrados na massa, estes bárbaros inaugurarão a era dos portugueses de olhos claros – um charme.
Adicione os Visigodos romanizados – ou Federados, como os romanos chamavam os povos conquistados que, de rabo entre as pernas, lutavam para defendê-los. Espertamente, o Império de Roma utilizava a estratégia de lançar bárbaros contra bárbaros. Mais ou menos como os norte-americanos de hoje, que engrossam seu exército com negros e latinos da periferia – alguém ainda duvida que a História se repete?
Misture cuidadosamente. Este momento é delicado: o sucesso do português dependerá, exclusivamente, de sua competência culinária. O gosto dos Visigodos deve sobrepôr-se ao dos Vândalos e dos Alanos. Apenas suavemente os bárbaros vencidos perfumam o prato - quase uma especiaria, o toque de classe.
Quando Vândalos e Alanos se dissolverem, bata vigorosamente pois Visigodos e Suevos tenderão a encaroçar por 150 anos. Mantenha-se atento à receita. Não pare de bater nem mesmo quando os Visigodos argumentarem serem os inventores do status quo da sociedade medieval portuguesa: clero, nobreza e povo – grande novidade. Faça-se de surdo e, até o último Visigodo desmanchar, capriche em revolver a massa. Afinal, Visigodos são guerreiros: podem armar uma falseta e solar o português.
Espere inúteis três séculos – Visigodo é um chuchu histórico, só faz volume, não larga gosto - e jogue os árabes e mouros. A massa ficará mais encorpada, adquirirá novos contornos, novas falas, novas técnicas, uma nova arquitetura. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala, assinala que é neste momento que surge o português típico, além de um original subgrupo característico do Norte, emblemático da milenar cruza de raças: homens morenos, cabelos castanhos, escuros olhos mouros, com barba e bigode louros ou ruivos.
O Brasil que - no final do século XIX, início do XX - recebeu maciça imigração de lusitanos do Norte, tem incontáveis homens morenos de barba clara. A maioria não sabe, mas eles são os representantes tropicais da malemolência lusa, useira e vezeira em misturar o próprio sangue ao sangue dos visitantes - eta povo hospitaleiro, este que nos descobriu.
Amasse, delicadamente, os islâmicos e os judeus sefarditas que, aos punhados, você veio introduzindo entre um e outro ingrediente. Deixe descansar, eles se aglutinarão naturalmente. Naquele tempo, estes dois povos, amigos, interagiam sem culpas.
Nesta altura, o português estará quase pronto. Agora, basta levar ao forno bem quente – eles são passionais, não assam em banho-maria.
Com o açúcar, faça uma calda em ponto de bala. Adicione cristãos a gosto, de todos os matizes e origens. Está pronto o português.
Desenforme e sirva-os ao Novo Mundo.
Angela Dutra de Menezes
In "O Português Que Nos Pariu"
Um relato positivo sobre a influência portuguesa na cultura brasileira escrito com muito humor.
Angela Dutra de Menezes, uma conceituada escritora brasileira, propõe em "O Português Que Nos Pariu" uma nova maneira de encarar a História.
Uma linguagem bem-humorada e sem a rigidez dos livros didácticos.
Recebido via Vila Pery