Soldado conhecido





Foi o treino e o trem
Foi o porto e o barco
O desfile, o abraço
O tambor a rufar

Foi o pranto no cais
O pai sso que fica
Sem jeito p'raida
Foi o eco do mar

Foi a marcha, o calor
Foi o peito inchado
Do homem fardado
Foi o seu funeral

Foi a arma na mão
A besta que nos berra
A força da guerra
O avião

Água que seca no nosso cantil
O lábio que greta, a febre a subir
O sangue que ferve cá dentro de nós
O corpo que treme debaixo do sol
O medo da morte, a noite a gritar
Foi aquilo que a gente não pode falar

Foi o estado maior
Foi a messe e o rancho
O mando, o comando
O quartel general

Os abutres e nós
Foi aquilo que fez
O negócio da guerra
E obrigou a matar

O estilhaço, o napalm
A picada no osso
O Ambriz, o Tomboco
Foi São Salvador

Foi a carta que dói
Da mulher que nos foge
E o puto lá longe
Tão longe de nós

A malta, a maca, o negro que cai
O cabaço da preta, o mulato sem pai
O soldado castrado no corpo e na voz
A mina que rebenta por baixo de nós
Foi o preço, é o braço artificial
É aquilo que a gente não pode calar

Foi a guerra colonial!



Paco Bandeira
do LP "Os ferrinhos, o adufe e a guitarra"

kilumba muxiluanda
















à
cidade de Luanda.



… num rouco e lânguido muxoxo
ao entardecer
a cidade se espreguiça:
ressonâncias das telúricas
núpcias mar/fogo. oh! vida.

levantam voo asas
de alva espuma.
deposita suaves beijos o mar
nas rochas. e sento-me. absorto

o horizonte, em chamas vespertinas
sorri às ondas
em seu erótico
saracotear
de kilumba muxiluanda.

nas esquinas enrugadas da onda
poiso meu rústico braço.
com ele se evola todo o universo
em tão ígneo verso…

oh! urbana ansiedade: choros risos
e sulfídricas sombras.
com frémito, raios de sol
salgados de sal
bebo. a vida mente.




Conceição Cristóvão

O Poema Que Te Não Sei Fazer





















Tenho um poema todo negro no cérebro.
Um sabor a sangue
Do poema vermelho da boca.
Uma ânsia louca e branca
Do poema róseo
Que me ofereces sôfrega e eterna
Ao artista que sou.

A!, fora eu mágico
E com esta sinfónica paleta
Musicar-te-ia o poema
Que fizesse de ti a rainha
De um tão pobre escravo-poeta.



António Cardoso

Viagem
























Não é preciso morar na esquina
nem ser jovem ou belo:
o amor melhor é sempre dentro
e perto.
Chega inesperado,
vem forte vem doce, acalma
e desatina.

Se está na minha rua ou vem de fora,
ele ignora o tempo e a idade:
o amor é sempre
agora.

É vento sutil e mar sem beira:
o amor é destino de quem está aberto,
e dói sem remissão quando negado.

O melhor amor sacia a fome inteira:
mas tem de ser aceito,
tem de ser ousado, tem de ser
navegado.



Lya Luft

Lembro-me de ti


















Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.
Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.



Lya Luft