O Sapo e o Poeta





















Alguns gordos e felizes sapos
Ainda batem longos, longos papos
Nos seus lodosos e felizes charcos
Marcos dessa civilização
Que imuna a emoção,
Que desumana o convívio.
Tanto canto de sereia,
Uma filáucia que se ateia
Nas tribos, nos saraus, à mesa,
Uma bazófia burguesa,
Burgomestres emproados,
Sabujos entronisados.
Estamos ficando enfermos
Qual um roseiral apétalo,
Qual noite que esqueceu o orvalho,
Órfãos pensamentos, acéfalos,
Na ventura de virtual sermos
Se virosos não tombarmos falhos.
Estamos deixando poluir-se o amor,
Esvaziar-se a ânsia do sonho impossível,
Grassar a epidemia do torpor,
Arder a brenha, esfumar as estrelas,
Sobejar o medo, desalentar a paz,
Fugir a vida ao escondê-la.
Enquanto isso ainda há gordos sapos
Que batem longos, longos papos,
Que têm a noite, as estrelas, o tempo de amar
Na cumplicidade do silêncio e do luar.
Oh! Trevas, Oh! Bruxas, alerta:
Transformem em sapo este poeta.




Francisco Simões

Ai, Timor... Um Minuto de Silêncio


































Um Minuto de Silêncio


Calai
Montes
Vales e fontes
Regatos e ribeiros
Pedras dos caminhos
E ervas do chão,
Calai

Calai
Pássaros do ar
E ondas do mar
Ventos que sopram
Nas praias que sobram
De terras de ninguém,
Calai

Calai
Canas e bambus
Árvores e "ai-rús"
Palmeiras e capim
Na verdura sem fim
Do pequeno Timor,
Calai

Calai
Calai-vos e calemo-nos
POR UM MINUTO
É tempo de silêncio
No silêncio do tempo
Ao tempo de vida
Dos que perderam a vida
Pela Pátria
Pela Nação
Pelo Povo
Pela Nossa
Libertação
Calai - um minuto de silêncio...



Borja da Costa







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Timor



Lavam-se os olhos nega-se o beijo
do labirinto escolhe-se o mar
no cais deserto fica o desejo
da terra quente por conquistar

Nobre soldado que vens senhor
por sobre as asas do teu dragão
beijas os corpos no chão queimado
nunca serás o nosso perdão

Ai Timor
calam-se as vozes
dos teus avós
Ai Timor
se outros calam
cantemos nós

Salgas de ventres que não tiveste
ceifando os filhos que não são teus
nobre soldado nunca sonhaste
ver uma espada na mão de Deus

Da cruz se faz uma lança em chamas
que sangra o céu no sol do meio dia
do meio dos corpos a mesma lama
leito final onde o amor nascia

Ai Timor
calam-se as vozes
dos teus avós
Ai Timor
se outros calam
cantemos nós



João Monge







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O Sul






















O sol o sul o sal
as mãos de alguém ao sol
o sal do sul ao sol
o sol em mãos de sul
e mãos de sal ao sol



O sal do sul em mãos de sol
as mãos de sul ao sol



um sol de sal ao sul
o sol ao sul
o sal ao sol
o sal o sol
e mãos de sul sem sol nem sal



Para quando enfim amor
no sul ao sol
uma mão cheia de sal?



Ruy Duarte de Carvalho

Conheço o sal...



















Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu Inverno
da carne repousando em suor nocturno.


Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.


Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.


Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.


Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.


A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.





Jorge de Sena
in Conheço o Sal...e Outros Poemas

O Meu Poema é o Povo

























O poeta não faz o poema
O poeta escreve a poesia

As massas
fazem o poema de ouro que não podem escrever
o povo
compõe belos versos que não pode desenhar.

Nos charcos
se faz poema de guerra
nos campos arrasados pelas bombas de fogo
o povo canta um poema
na travessia de um rio
que devora os que não sabem nem podem nadar
os mortos nos legam versos que não podem ler.

O meu poema
não sei escrevê-lo também
não posso escrever o poema que sinto no peito
por serem vários os versos.
São tantos os autores do meu poema
e versos assim
trazem rima doutra inspiração.

Rimam em cada metralha que dispara
rimam no chorar do órfão
rimam nas grutas protectoras do guerrilheiro.

Não sei escrever este poema.

Gostaria de cantar o poema que me bate no coração
mas não posso
porque este é o próprio Povo em armas
e só ele deve continuar
a fazer o poema que eu não posso redigir
nem ele pode ler também!

Os que fazem a História
Nem sempre podem escrevê-la.



Nito Alves (1945-1977)
In Memória da Longa Resistência Popular




Este magnífico poema chegou-me via Jovens de Angola onde, em cada palavra, se sente o pulsar de um povo, os seus debates francos, abertos e plenos de vivacidade e generosidade.

Pode ser lido aqui, de onde o retirei.
O site da Associação 27 de Maio merece uma visita.


Poema Armado

























Que o poema venha cantando
ao ritmo contagiante do batuque
um canto quente de força,
coragem, afecto, união

Que o poema venha carregado
de amarguras, dores,
mágoas, medos,
feridas, fomes...

Que o poema venha armado
e metralhe a sangue-frio
palavras flamejantes de revoltas
palavras prenhes de serras e punhais...

Que o poema venha alicerçado
e traga em suas bases
palavras tijolantes,
pontos cimentantes,
portas, chaves, tectos, muros

E construa solidamente
uma fortaleza de fé
naqueles que engordam
o exército dos desesperados

Para que nenhuma fera
não mais galgue escadas
à custa de necessidades iludidas...

E nem mais se sustente
com carne, suor e sangue
dum povo emparedado e sugado
nos engenhos da exploração!



Oubi Inaê Kibuko

Portuguíndio






















Foto de Ricardo Pestana, aqui




Às 21 h e 50 min do Rio de Janeiro - Brasil
- em homenagem à Pátria-Mãe do Brasil

Navego-te, sou um menino,
Oh, ilustre Portugal,
Nos sonhos que descortino,
Rumando ao teu litoral.

Se não disponho de nau,
Eu apenas silencio,
Escolho o verso ideal
E pronto: tenho um navio !

E aporto logo em teu Tejo,
Beijo os versos de Pessoa
E tantos outros que vejo:
Florbela, Régio... a alma voa ...

Bocage, Camões... Sá Carneiro
Tantos míticos poetas...
E faço-me prisioneiro
De tua história inquieta...

Vislumbro tua Lisboa,
Teu Porto, tua Marinha...
A tua gente tão boa...
Teus castelos, tuas vinhas

E nesse ato de amar-te,
Buscar-te e um dia ver-te
Contento-me em sonhar-te,
Que estranho... sem conhecer-te.

Abro meus olhos felizes,
E esse amor repentino
Se faz em vários matizes
Tenho os sonhos de um menino...

Mergulho num tempo antigo
E o meu avô português
De olhos azuis, ri comigo
E diz: - Sabes quem te fez ?

...Uma índia brasileira,
Que um dia arremessou
Uma flechada certeira
No peito do teu avô !



Luiz Poeta
In Voando Fora da Asa

Luanda






















Luanda

Aqui reside tudo
E todos

Germinam as raízes todas
Aqui está cada um dos braços e dos rostos
Dum só corpo que anda sobre o vento
Navega os céus e toda a geografia
Desde a minha aldeia e do meu povo
Desce o campo refugia-se na cidade
Das ruínas às pontes de margens ansiosas
Tarda o abraço
Demora o dia das horas sucessivas
Sem paragem

No tempo de memórias tristes
Aqui estamos e estaremos
Porque somos
Mais do que pó e húmus
Unida essência dum jardim de vida
Morremos várias vezes no percurso
Mas seremos sempre
Capazes de chegar
à vida
Porque somos todos, somos um
Em cada um
Dos pontos cardeais
Deste país. Angola



Costa Andrade

Feriado Mundial

















Por sugestão de Brunokimg do excelente A Irmandade do Macaco respeitaremos aqui o silêncio dos 9 minutos e 25 segundos para ouvir So What, no dia em que, se fosse vivo, Miles Davis comemoraria 80 anos.
Ouçamos:















Fica também aqui o tributo a Duke Ellington, excelentemente recordado aqui pela IO no seu fantástico chuinga.d
Fica In a Sentimental Mood com John Coltrane.
Ouçamos:


Call To The Four Sacred Winds


























I call to the East, where the Father ascends
to all Mother Earth where life begins.
I fly through the cedars, pines, willows, and birch
as animals below me wander and search.

I call to the South, to the land down below.
Turtle stands silent, as man strings his bow
to hunt food and fur for his kin before snow.
A life will end so others will grow.

I call to the North, that yansa once knew.
I follow their path til it disappears from view.
Once vast in number, there stand but a few.
I hear only ghost thunder of millions of hooves.

I call to the West, to the ends of the lands,
to the Tsalagi, Kiowa, Comanche ... all bands.
Unite for the strength. Teach the young and demand
that you are Native Americans. Learn your tongue and stand.

My name is Freedom... I fly through this land.
I call to the Four Sacred Winds of Turtle Island.





Spirit Wind
(Pat Poland)

Machupicchu


























I

Ciudad cóndor devorando infinito
granítica plata en palpitantes metafísicas
alucinar de feláticas orquídeas
convergen espacios hanan — urin

II

Orgasmo de piedra estremeciendo al viento
lomos violadores de cumbres
constelaron wancas de orfebrería
jadeando lítico arco iris

III

Techumbre de sueños
preñaron la garganta de Wilcamayo
paucar waman quispe copuladores
siderales
aprisionaron lumbre solar
ardiente fuego sangriento
tajamar de luna cósmico diseño

IV

Horizonte de atalayas
ángulos pétreos del amanecer
coítica ternura — vibrante manantial
palabras en piedra
Machupicchu
constructor milenario
BATALLAS ANDINAS

Granos escarlata incendian el tiempo
quintu de coca — chicha dorada
cubren líticos senos
andenes en pétalos frutecen
agua en acústicas cristalinas
granítico escalar
libraron en milenarias batallas andinas
guerreros del maíz papa quiwicha
aguadores del espacio
caminaron caminan caminarán
guerreando los confines del hambre
sinfonías cautivas en la mirada
recordando manos domesticadoras
de ojos de llama
genitales alpaca
latidos vicuña:::::::::::::tternura illa



Ana Vizcarra

Teu corpo


























Do litoral do teu corpo já não partem
meus barcos de súbitos enredos


mas a longa memória do teu rosto

acorda ainda a noite nos meus dedos.




António Arnaut

Se eu pudesse...




















Se eu pudesse deixar-te algum presente,
deixaria aceso o sentimento
de amar a vida dos seres humanos.

A consciência de aprender
tudo o que foi ensinado pelo tempo fora...
Lembraria os erros que foram cometidos
para que não mais se repetissem.

A capacidade de escolher novos rumos.
Deixar-te-ia, se pudesse,
o respeito àquilo que é indispensável:
Além do pão, o trabalho.
Além do trabalho, a acção.

E, quando tudo faltasse, um segredo:
O de buscar no interior de ti mesmo
a resposta e a força para encontrar a saída.



Mahatma Gandhi

Prémio Camões 2006

















Sons


A guitarra
é som antepassado

Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.

Chorei fado.

Que importa hoje
se o recuso:

o ngoma é o som adivinhado



José Luandino Vieira

In Reino de Caliban II - antologia
panorâmica de poesia africana de ex-
pressão portuguesa












Muxima



















Foto de Rui Cardoso




Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima
Muxima ue ue, muxima ue ue, muxima
Se uamgambé uamga uami
Gaungui beke muá santana
Kuato dilagi mugibê
Kuato dilagi mugibê
Kuato dilagi mugibê
Lagi ni lagi kazókaua
Kuato dilagi mugibê
Kuato dilagi mugibê
Kuato dilagi mugibê
Lagi ni lagi kazókaua



Carlos Aniceto Vieira Dias




Don Kikas e Tito Paris

Discurso sobre a paz
























Já no final de um discurso extremamente importante
o grande homem de Estado engasgando
com uma bela frase oca
escorrega
e desamparado com a boca escancarada
sem fôlego
mostra os dentes
e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
deixa exposto o nervo da guerra:
a delicada questão do dinheiro.



Jacques Prévert

Mistério


















Quadro de Dario Suro, aqui



O tempo presente
tem suas rugas
o agora é um fotograma
o que há sobre a terra
passa
menos a poesia
que desliza como a chuva
e molha a existência
dos que ousam
olhar para a fantasia.


Almandrade

Sede


















Sede...

Tenho sede dos crepusculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...

Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...

Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...



Alda Lara

Circumnavegação



















Foto daqui



Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circumnavegando
a esfera



Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.





Ana Paula Ribeiro Tavares

Poema para Eurídice Negra























Foto de Carlos Loff Fonseca em 1000 imagens



Dos teus seios negros
nasceram os rios do povo negro

Eurídice,

e o sol e o fogo
foram sol e fogo
nos teus olhos de África

Eurídice.

na virgindade do teu sexo,
puro como as minhas florestas,
morreram milhões de escravos,

Eurídice,

Mas tu és amor,
na imensidade do Índico
possuindo Moçambique,
és o sonho,
na tranquilidade do Níger
acariciando o Sudão amado,
minha África-Eurídice
que o tam-tam de guerra
ainda não acordou
Levanta-te e vem,
que soam as marimbas e o tambor
do nosso povo!
Quando eu construí as pirâmides,
só te vi a ti,

Eurídice,

O Cruzeiro do Sul
foi nosso palácio
quando reinei
no meu império do Mali;
depois vieram os navios,
e arrancaram-me o teu coração,
e a minha voz
ficou rouca
nos trompetes que te procuraram;
mas agora

Eurídice,

os nossos corpo
voltaram-se a encontrar,
as mangas
ficaram douradas
e as buganvílias floriram,
as acácias
vestiram o negro
do teu corpo nu.
E o Zambeze
que atravessou toda a África,
o Zambeze
que acariciou todo o corpo

de Eurídice,

o Zambeze
uniu-se ao Congo
e ao Niger
e ao Nilo
e a toda a África-Eurídice.

Vem Eurídice,

vem,
vamos correr pela savana
e dar as nossas almas à chuva
para elas crescerem,
rolaremos
na esperança verde do capim;

Eurídice,

são doces os frutos
das nossas árvores,
e as flores da nossa terra
vivem em perfume no ar,
nos nossos céus
há mais estrelas,
nos nossos olhos
há mais luz,
nos nossos pulsos livres
há mais sonho...

Vem Eurídice, vem!




Sérgio Vieira
In Também memória do Povo (1983)

Não Chamo Um o Maior e Outro o Menor





















Não chamo um o maior e outro o menor,
Quem quer que preencha o seu período de tempo
e lugar é igual a qualquer outro.

Meus signos são uma capa à prova de chuva, bons
calçados e um bordão colhido nos bosques.
Nenhum dos meus amigos busca descanso em
minha cadeira.
Não possuo cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo homem algum à mesa do jantar,
biblioteca ou casa de câmbio,
Mas conduzo cada um de vós, homem ou mulher,
para o alto de um outeiro
Minha mão esquerda prende-vos pela cintura,
Minha mão direita aponta em direcção de
continentes e estrada aberta.



Walt Whitman

Cântico de Alforria

























Vem, segura a minha mão
Iniciemos um roteiro amargo de peregrinação:
Pelo trilho batido do fundo da floresta
Partamos até ao mar cruel
O mar sem fim, veículo da nossa servidão.

Não, não feches os olhos à tragédia
Olha os negreiros ancorados na baía da
[nossa desgraça
Os nossos irmãos acorrentados
Como gado, sorvidos pelo negrume dos
[bojos insaciáveis
Semelhando ventres de deuses bárbaros.
Virgínia, Alabama
Mississipi
Sangue vermelho
Suor de negro branqueando algodão
Cuba, Brasil
Martinica
Mais sangue vermelho,
Suor de negro movendo engenhos de açúcar.

Eis o nosso povo sacrificado
Eis a nossa gente
A nossa gente transpondo mares e mares
Carne da nossa carne
Sangue do nosso sangue disperso pelo Mundo.

Vem, segura a minha mão serena
Em passo firme caminhemos até à orla do mar algoz
Escutemos as vozes perdidas na profundeza
[dos abismos
Os ecos dos gritos abafados
Congelados em pedaços de nossa carne
[ensangüentada
Congelados em miríades de búzios abandonados
[ao sabor das ondas

Vem, irmão, seca as lágrimas nas pupilas
Toma a minha mão amiga
Percorramos o mesmo trilho batido do fundo
[da floresta
Na jornada de regresso que nosso povo não caminhou
E à volta da árvore milenar à beira do caminho
Saudemos a alforria ansiada pela nossa geração.



Jofre Rocha
In Tempo de cicio

A fraternidade das palavras





















O céu
é uma m´benga
onde todos os braços das mamanas
repisam os bagos de estrelas.

Amigos:
as palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.

E eis que num espasmo
de harmonia como todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam em poema.



José Craveirinha

África minha cantora


















Guitarra, que estás tocando ?
Não vês a cor do luar ?
Não vês a cor do Sertão ?

Não vês a erma magia
Romântica Tentação
Desta Angola que nos criou
E nos toca o coração ?

Repara a ganga infiltrando
Em selvagem natureza
O feiticeiro espeldor ;

Ouve o cantar das viuvinhas,
Dos chacais ouve os latidos ;
Vê o clarão das queimadas
E o romper das madrugadas
Em quadros belos... perdidos...

Guitarra, que estás tocando
Nesta noite de luar ?
Não vês para além das chamas
As mucaias a gingar ?
Olha as sombras africanas
Bricando sob o palmar...

Ouve o rugir do leão
Ouve o chorar duma hiena
E verás quão bem pequena
É tua voz no Sertão !


E quando vires o manto
Do grande Zaire entre as relvas...
Pára guitarra teu canto
E deixa cantar as Selvas




Eduardo Brazão Filho

Mãe
























Minha mãe.
Trago a resina das velhas árvores
da floresta nas minhas veias.
E a sina de nascença
no meio das baladas à volta da fogueira
tu sabes como é sempre uma dor nova
sabes ou não sabes, minha mãe?

Sabes ou não sabes
o mistério de olhos inflamados de macho
que um dia encontraste no teu caminho
de tombasana de pés descalços?

Sabes ou não sabes, Mãe
a resina das velhas árvores plantadas pelos espíritos
as blasfémias dos mortos salgando as raízes virgens
e as grandes luas de ansiedade esticando
as peles dos tambores enraivecidos
e dando às folhas das palmeiras
o brilho incandescente das catanas nuas?

E no sabor do encantamento, Mãe
dos nossos desenfeitiçados ancestrais
o exorcismo ingénuo das tuas missangas
o maravilhoso mecheu nas tuas canções
e o segredo do teu corpo possuído
mas de materno sangue inviolável
donde a minha sina nasceu.

No
espaço da tua sepultura de negra
sabes ou não sabes a verdade
agora sabes ou não sabes
minha Mãe?



José Craveirinha

Nunca é tarde
























Foto de Paulo Monteiro em Album de Fotos Santo Antão (Cabo Verde)




Quando no cais só fica ancorada
A indiferença e já não resta nada
Senão as ilusões a que te agarras.

Ouve a voz inefável das guitarras
Tingindo de paixão a madrugada
No fim duma viagem povoada
Do canto indecifrável das cigarras.

Saberás então que há sempre um começo
No profano rio em que a vida arde,
E é nessa maré viva que estremeço.

Mas, ainda que saibas que nunca é tarde,
Não tardes, que sem ti eu anoiteço,
E não peças jamais ao rio que aguarde.



António Tomé

Afroinsularidade





























Foto de Décio Lopes em Caminhadas e Descaberta em STP




Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes - cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d' óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros - ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.



Conceição Lima
in "O Útero da Casa"







Rui Mingas
Muimbo Ua Sabalu

Como o mundo foi criado de uma gota de leite























"No princípio havia uma enorme gota de leite.

Doondari veio e criou a pedra,
A pedra criou o ferro
e o ferro criou o fogo
e o fogo criou a água
e a água criou o ar.

Doondari desceu pela segunda vez.
Tomou os cinco elementos
e com eles modelou o homem.

Mas o homem era orgulhoso
Por isso Doondari criou a cegueira,
e a cegueira
venceu o homem".


Cosmogonia Fulbé

Povo


























É sempre a mesma história repetida
É sempre o mesmo lodo e a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassou o pão mas não come.

É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o mar
O rubro desespero, a voz magoada
E o sonho bom desfeito ao acordar.

É sempre esse horizonte de fuligem
É sempre esse arranhar em duro chão
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação


Aguinaldo Fonseca

Andar




















o mundo é grande
seus caminhos
são como a trilha dos Andes

o mundo é grande
quanto mais caminho,
mais caminho

para onde me levará esta inquietação que me
incendeia o peito?

o mundo
é grande

cabe
na minha mão

meu mundo é uma caverna sem fundo
um naco de luz
me mantém vivo

carrego na bagagem
o peso da eternidade



Moisés Matias

Mãos dadas






















Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus
[companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes
[esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos
[afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos
[dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma
[história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a
[paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas
[de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei
[raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo
[presente, os homens presentes, a vida presente.




Carlos Drummond de Andrade
In Reunião

When The Indians Cry


.. Posted by Picasa





Babe tell me where
Will you sleep tonight
For there's such a pain in my heart
And I've got a flame
That's dying inside
And I feel that we'll soon have to part


When the indians cry
And the eagles die
Cos the winds of change blow again
Then I'll know that you
Turned the world into blue
And my tears will fall like the rain


Love can be so cruel
When the light of hope is gone
I know cos I felt it before
In the desert of fear
I can hear this old song
Of a love that won't live anymore


When the indians cry
And the eagles die
Cos the winds of change blow again
Then I'll know that you
Turned the world into blue
And my tears will fall like the rain


When the indians cry
And the eagles die
Cos the winds of change blow again
Then I'll know that you
Turned the world into blue
And my tears will fall like the rain


Then I'll know that you
Turned the world into blue
Then I'll know that you
Turned the world into blue
And my tears will fall like the rain




Vanilla Ninja
In Traces Of Sadness


Entre o calor das tuas pernas




















Entre o calor da tuas pernas
sobressai firme e vigorosa
numa atitude de lascúdia
a rosa dos meus desejos.
E vejo em cada curva das suas pétalas
milhões de gestos provocantes
que me inundam o corpo
com milhões de riachos prateados

Entre o calor das tuas pernas
desabrocha muda e esperançosa
a rosa dos meus desejos.
Por ela vivo uma ânsia profunda
de ver chegar o dia
em que me deliciarei diluído
no seu aroma inebriante.

E nesse dia,
milhões de forças gritantes
percorrerão o meu sangue
e galgarei sobre a montanha sagrada
abrindo trilhos por entre o mar de flores
penetrarei embriagado
nas cavernas negras e alagadas
de paredes desejosas
e descarregarei
todo o meu furor bastante
sobre os recantos mais profundos
dos subterrâneos conquistados
do jardim afrodisíaco

E então
regressarei flácido mas ressuscitado
e sobre a montanha sagrada
dormirei um sonho profundo!



Amadeu Kazunde
in As palavras amadurecem
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