Mukai*






















Foto de Ana Filipa, em Mbanza Congo, in Onde a Lua Anda



1

Corpo já lavrado
eqüidistante da semente
é trigo
é joio
milho híbrido
massambala

resiste ao tempo
dobrado
exausto
sob o sol
que lhe espiga
a cabeleira.

2

O ventre semeado
deságua cada ano
os frutos tenros
das mãos
(é feitiço)
nasce
a manteiga
a casa
o penteado
o gesto
acorda a alma
a voz
olha p'ra dentro do silêncio milenar.

3

(Mulher à noite)

Um soluço quieto
desce
a lentíssima garganta
(rói-lhe as entranhas
um novo pedaço de vida)
os cordões do tempo
atravessam-lhe as pernas
e fazem a ligação terra.

Estranha árvore de filhos
uns mortos e tantos por morrer
que de corpo ao alto
navega de tristeza
as horas.

4

O risco na pele
acende a noite
enquanto a lua
(por ironia)
ilumina o esgoto
anuncia o canto dos gatos
De quantos partos se vive
para quantos partos se morre.

Um grito espeta-se faca
na garganta da noite

recortada sobre o tempo
pintada de cicatrizes
olhos secos de lágrimas
Dominga, organiza a cerveja
de sobreviver os dias.




Ana Paula Ribeiro Tavares
in "O Lago da Lua"


* Mukai: - mulher

M'Banza Congo













A minha memória de Mbanza Congo, em 1972




Mbanza Congo regressou aos títulos de 1ª. página... infelizmente pelas piores razões.
O acidente com um Boeing 737 vitimou seis pessoas.
Apenas um milagre poderá terá impedido que mais mortes ocorressem.
Ainda bem que há... milagres!
A minha solidariedade para com os familiares das vítimas do acidente.
















M'banza Congo é e será sempre um marco fundamental na minha vida.
O acidente trouxe-me á memória características únicas daquela pista, daquela lindíssima cidade e daquele povo portentoso e amigo.

O meu baptismo de voo aconteceu num voo de Luanda para Mbanza Congo, então São Salvador do Congo.























Um «enorme» DC3 da DTA, antecessora da TAAG levantou do Aeroporto Craveiro Lopes, hoje 4 de Fevereiro, escalou Ambriz, Ambrizete, Santo António do Zaire seguindo depois para São Salvador, antes de rumar a maquela do Zombo e regressar finalmente a Luanda.
Uma viagem inesquecível.

Recordo desse tempo as dificuldades que aeronaves de grande porte tinham para ali operar. O avião maior que por ali aterrava era o famoso «Barriga de Ginguba» - o Nord Atlas, militar.
Aviões de escala da DTA não recordo, ali, outro que não fosse o Dakota.

Lembro que a capital da Província do Zaire era, na altura, uma pequena cidade do interior, ameaçada pela guerra que não raramente passava não muito longe dos seus horizontes.

Rodeada de arame farpado por todos os lados, a sua extensão máxima correspondia, grosso modo, ao comprimento da sua pista de aviação - curta e estreita.

A «aerogare» não existia e todo o processo burocrático ligado ás viagens era efectuado numa loja de uma vivenda contígua á pista - a Casa Verde.

A pista do aeroporto tinha, no início da década de 70, características muito especiais. Dividia a cidade em duas, estando de um lado a «cidade branca» e do outro a «cidade negra», a sanzala.

Esta pista era talvez uma das únicas pistas onde de um lado para o outro da cidade circulavam livremente pessoas e veículos. Essa passagem situava-se junto ao CRESSA (Clube Recreativo de São Salvador).

O relato do acidente agora ocorrido recorda-me que um avião com a envergadura do DC3 passava com a ponta das asas sempre muito perto das casas, fossem elas, na altura instalações militares, a Missão Católica, a Catedral de São Salvador... ou as humildes casas de adobes de muitos amigos.
Qualquer incidente nestas circunstâncias pode tornar-se catastrófico.




Não me parecendo, pelos relatos que tenho, que a estrutura urbana á volta da pista se tenha alterado, mesmo que, como se sabe tenha sido melhorada e eliminada a tal passagem, fácil é admitir que uma pequena falha, tenha ela a origem que tiver, ponha em perigo a segurança da aeronave e de toda a zona urbana que ladeia a pista.


Admitir que aeronaves como a que agora sofreu o acidente escalam aquela pista assiduamente, por melhores que hoje sejam as condições, é sem dúvida uma proeza humana dos pilotos da TAAG!

Confesso que, mesmo antes do acidente, se me dissessem para regressar a Mbanza Congo num Boeing 737, o faria de imediato, sem pestanejar. Mas que, até aterrar em segurança, estaria absolutamente espectante quanto á possibilidade do «monstro» conseguir ali pousar, creiam que estaria...


Assisti, ali, a DC3 tentarem a aterragem e terem que abortar o processo, fazendo razante á pista, em aceleração muito próxima do Hospital Provincial, não muito longe do limite da pista, na altura assinalada com metades de bidãos de 200 litros.

A perigosidade daquela pista, fica patente na imagem de um outro acidente ali ocorrido em 1994, provavelmente por motivos idênticos, com um Boeing 727 da TransAfrik.




















Qualquer que seja o avião, quaisquer que sejam os riscos... aí voltarei, estou certo!

Embondeiro























Hoje sentei-me debaixo de tiEmbondeiro
E, ainda que por momentos,
Viajei no tempo do foi assim...
Das savanas extensas feitas de mim
Das queimadas redentoras sem fim
Das chuvas torrenciais do novo capim
Na terra dos cheiros a mandioca e açafrão
E de todas as metamorfoses de que foste guardião.
E senti, no rosto, o beijo de picante paladar
Daquela negra de fascinante olhar
Semi-deusa, semi-nua em corpo de enfeitiçar
Que dentro ti me mostrou um mundo de emoções
Ao som de um batuque que lá do longe
Nos ofertava os delírios de ancestrais iniciações
E nos oferecia lições de aprender a viver
Em tempos a que só o tempo sabia responder.

Hoje sentei-me debaixo de tiEmbondeiro
E, ainda que por momentos,
Fiquei imóvel, esmagado, chão terreno
A olhar-te como quem entende esse segredo
De seres tão grande e tão pequeno
E de me fazes sentir este imenso degredo
De só te poder viver nos sonhos de um aceno.
Mas, ainda assim, vivi, sonhei, abri asas e gritei.
E cavalguei no dorso das gazelas
Subi ao penhasco das águias, soltei-me, planei com elas
Bebi água com o leão, entre javalis e zebras
Descansei à sombra dum elefante, ouvi o choro das hienas
Fui mais alto que as girafas, fui animal de mil raças.
E entre bandos multicolores em acrobacias de perigo
Voei horizontes de azul rasgados a vermelho vivo
Para lá da tela do sol-pôr que me ofertavas
Enquanto, deleitado, debaixo de ti me abandonava
Ao sabor da brisa que canta o imenso hino
Que, de tão intenso, cabe numa simples semente de tamarindo.

Hoje sentei-me debaixo de tiEmbondeiro
E, ainda que por momentos,
Fui livre na criança que te aprendeu a pinceladas de negro
E se fez homem nos encantos da mulata em requebro
Em batucadas de feitiço vestidas de mil saris
E revestidas com cânforas de cheiro e óleos subtis
Emolduradas pelos olhares dos longínquos mandarins,
Que me fizeram crescer entre o carrinho de arame e lata
E a lângua de matope onde pescava cacanas cor de prata
No tempo em que as cobras eram simples animais
E me ofereciam de prazer todos os pecados originais
Herdados directamente da estirpe de Gungunhana
Imortalizados nos vermelhos fortes de Malangatana.
E eu sonhava com manchimbombos amarelos em ilusões abertas
Que rumassem a um futuro de saudáveis descobertas
Da harmonia dos cheiros de África e dos orientais incensos...
Mas que o homem, abruptamente, manchou de fatais contra-sensos.

Hoje sentei-me debaixo de ti...Embondeiro
E, ainda que por momentos...Revivi!
Depois..., parti.



António San

Sobre a violência




















Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem



Bertold Brecht

Ultimatum futurista
























Às gerações portuguesas do séc.XXI



Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!
Atirem-se independentes prá sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!
Morram todos os derrotismos! Morram! PIM!




José de Almada Negreiros

Sonho
















Foto de Nuno Mendes em Caminhadas e descoberta em STP





Pudesse eu um dia voltar à minha terra
ver os coqueiros e os cafezais em flor
ver as sanzalas transformadas em casas dignas
de homens que trabalham noite e dia


pudesse eu tornar a ver-te mãe
e abraçar-te e beijar-te até não mais
e ver finalmente os meus irmãos de cor
respeitados como eu sempre sonhei


pudesse eu ver as palmeiras da avenida
gingando ao vento e ao grande calor
e pisar essa terra agora nossa


pudesse eu daqui dizer-vos tudo
que sinto e que quero transmitir
pois mesmo longe estarei sempre ao vosso lado




Olinda Beja
in "Bô Tendê?"

Canto para Angola
















Hei-de compor um dia
um canto sem lirismo
nem tristeza
digno de ti, ó minha terra.
Hei-de compor um canto
livre e sem regras
que de boca em boca vai partir
nos lábios de velhos e meninos.
Será o canto do pescador
com todos os sons do mar
com os gemidos do contratado
nas roças de São Tomé.
Será o canto de todos os dramas
do algodão do Lagos & Irmão
o das tragédias nas minas
da kitota e da Diamang.
Será o canto do povo
o canto do lavrador
e do estudante
do poeta
do operário
e do guerrilheiro
falando de toda Angola
e seus filhos generosos.




Jofre Rocha

Tenho saudades
















Tenho saudades do tempo
Em que corria descalço
Pelas areias do rio;
Comigo, os meus companheiros
Também descalços, correndo,
A correr ao desafio.

Tenho saudades do Largo
Onde estava a minha casa,
Com mulembas altaneiras;
Tenho saudades das sombras
Com que os seus ramos cobriam
Sempre as nossas brincadeiras.
(- Quem tem o canhé?
És tu!
Pescoço de ganso, monco de peru…
Quem tem o canhe?
Sou eu!
Diabo, diabo, vais p’ra o céu…)

Tenho saudades, meu Deus,
Tanta, tantas que nem sei
Como me cabem aqui;
Tenho saudades, até, Das saudades que senti.

II

No quintal da minha casa
Vestido de prata nas noites de luar,
As sombras das mangueiras
Eram rendas espalhadas
Pelo chão.
E as horas do serão
Corriam apressadas.
As moças a namorar,
As crianças a brincar
Rindo,
Cantando,
Chorando
Dum trambulhão;
As velhas, quase em surdina,
Contavam histórias do mato,
Do tempo da escravatura:
-Um branco, um coelho e um gato,
Outros bichos à mistura,
Bichos sabidos que falavam.
Depois, quando a lua descia
P’ra se esconder no Sombreiro,
Todos, todos se juntavam
Em redor da minha avó.
Havia quifufutila,
Havia pé de moleque…
…E a lua desaparecia
No Casseque!...

III

Onde está o meu quintal
Vestido de prata nas noites de luar,
Com rendas de sombras espalhadas pelo chão?
Onde estão esses meninos
Que riam chorando
Dalgum trambulhão?

A vida os levou p’ra longe de mim!

Agora, de tudo isso,
Só me ficou o feitiço
Desta saudade sem fim.
E quando a lua se esconde
No Sombreiro
Fico sozinho na praia
À laia
Não sei de quê,
Olhando o mar,
Carpindo saudades,
A olhar
A olhar…




Aires Almeida Santos

Trazias tanto mar na pele dos dedos



















Trazias tanto mar na pele dos dedos
onde o teu corpo é sempre o meu princípio
de nunca querer chegar
ao fim a voz da vaga
quantas vezes te disse e te cantei ?
Quantas vezes sal de pôr na boca
Quantas vezes concha seios de maré
búzio de carne
um leito de água no teu ventre
de marulhado espasmo musical ?

E quando a água aquecia nossa fúria
quantas vezes sentimos que o mar não era tudo
e os olhos queriam mais no meio dos ruídos
cazuarinos
um ximbicar nas coisas sem limite.

Mas põe o nosso corpo nestas dunas
de sol pleno e todo destapado
alimentando o lago da miragem
que se descobre na esquina onde só era
o nu da luz na escassez de arbustos
de um pouco-a-pouco deste ar sopro quente
que a nossa boca expira para a boca
e nossos olhos prolongam para sul.

Aqui pressinto o que faltava quase
ao nosso mar
para que fosse a imensidão
mais simples mais essencial.
Ouve-me então nesta coragem de planta
amor eu penso a minha curva de Welwitchia
erecta em solidão da tua ausência
depois que trouxeste tanto mar na pele dos dedos."




Manuel Rui

Oh Angola dor mansa e bruta






















oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente

desandando
em gargalhada teimosa
e
pé de dança atrevido
para
loucura de abismo

a compasso
de marimbas guitarras eléctricas
e
minas

oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente




Arlindo Barbeitos
In “Na leveza do luar crescente”

(o rabo do gato desenha)


















o rabo do gato desenha
letras árabes no mosaico da sala.
arranha o tapete de arraiolos,
rasga o jornal de letras
e um verso escapa-se pela janela entreaberta

uma pétala de violeta
é o tempo das violetas
fugiu para a janela da vizinha
um andar abaixo.
talvez atraída pelo cisne de camille saint säens
no carnival des animaux

o gato enfurece-se com o silvo do vento
e quase me estraga o poema.
vale o método tradicional
um novelo de linha encanta o gato.

alguém pousa os lábios nos meus olhos.





José Félix
in “Geografia da Árvore (a reinvenção da memória)”
Abril, 2002

Agora eu era linda outra vez


















Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor




Valter Hugo Mãe
in «O Resto Da Minha Vida seguido de A Remoção das Almas»

O mundo de hoje

Segredo


















O homem planta pontes no além,
explica ocasos que nunca se vêem,
erige templos onde furta outrem,
se perde atônito nesse vaivém.

Maquia a própria ilusão, persegue
algo que ele não sabe bem ao certo
se está no ar, no mar ou no deserto,
se existe, enfim, mas não há quem o negue!

Depois se espanta quando sob o nada
nada descobre, chora, se entristece
com o vazio do conto de fada.

É quando entende que o ser carece
de ser feliz, de ter a alma caiada,
de estar nascendo enquanto perece.



Maurício Rosa de Almeida

As idades da pedra I






















É do mar que vêm estas vozes
silabando a linguagem das marés,
gravando na areia estranhas grafias
onde, quem sabe ver, desvenda o rumo
no sobressalto das ondas.

Este permanente arfar marinho
desperta a ressonância de oculto escuro
de obscuros templos submersos onde o coração,
descompassadamente, se perturba
na iminência do segredo revelado.

Cheiros de primeira pátria,
nesta urgência de sal em nossos membros,
atrai as pegadas para a líquida planura
pela saudade de verde glauco
que estira o corpo na fronteira do mar.

Reminiscência da primeira voz,
neste marulhar à concha dos ouvidos,
desperta nossa cólera e angústia
de malograda fuga e de nos vermos,
na babugem das águas, de olhos vítreos,
adormecidos peixes sobre a areia.




Cândido da Velha
In “As idades de pedra”

As idades da pedra II

















Foto de Krzysztof Ciborowski




As pálidas luas das tuas mãos negras,
os olhos da paisagem insular,
teu corpo conspirando com a noite,
(beijo africano de húmidas pressões),
toda a claridade da hora aprofundada
no ventre generoso e farto.

A viagem regressiva aos ancestrais:
O reencontro para lá da linha quebrada,
oculta no tempo; justificacão
de sermos outra vez humanos, simples,
tudo nas pálidas palmas das mãos
quando, materna, apresentaste o peito
à concha do ouvido para que ouvisse
o rumor da noite longínqua
e permitiste ao sono que viesse, amável,
na grande verdade a nosso respeito.
e em toda aquela aurora sem mentira
arborizando o corpo quebrantado
ansiávamos o dia para celebrarmos
o cacimbo matinal em nosso olhar
no fresco odor da casa de madeira.





Cândido da Velha
In “As idades de pedra”

Sofrimentos














A dor que em mim mora
não é o mal no meu corpo
carne destinada à terra húmida
última guardiã do sofrimento

pois esse já fiz oferenda
ao mais Homem de todos os Homens
mumificado pela injustiça humana
que estrangula o nosso ser

a dor que em mim mora
é a que vi em Bissau
é a que viveram na travessia para Dakar
é a que viveram na travessia para Cabo Verde
é a que vejo no corpo dos outros



Carlos-Edmilson M. Vieira
in "Um cabaz de amores"

A Cimeira de Rostok e o Planeta da Fome

Em 2005, o fotógrafo Peter Menzel e a escritora Faith D'Aluisio lançaram, Hungry Planet: What the World Eats.




Cada capítulo retrata uma famíla e o que ela consome durante uma semana.

















Acima a família Aboubakar, em Darfur, no Sudão.
Abaixo a família Melander, em Bargteheide, Alemanha.


















As listas detalhadas bem como os valores gastos estão aqui.
De que modo a situação se terá alterado?

Da Cimeira de Rostok saiu mais um bocado de nada para os africanos.
Não quero ser maldoso mas a semelhança com os chás de caridade vem-me sempre á memória... Fico sempre com a sensação de que a ajuda nada mais é que o pagamento para que África fique com os seus problemas e não os exporte.

Será?

Mãe-Terra

















Terra vermelha do Lépi és minha mãe
Mãe-Terra que aos filhos dá
mais do que a vida uma razão

Razão de águia
águia transformada
no soba dos espaços
e das espinheiras cruas.

Terra vermelha do Lépi
calma sombra das mangueiras
sobre o chão vermelho
rocha negra do saber de ferro
a água sabe à voz materna

Águia de pedra
embala onde sentaram
régios Mussindas de vento
em gerações de luar
gritando ao vale profundo
aos muxitos
e ás mulembas velhas
a superfície larga do barro
do corpo negro dos filhos



Costa Andrade

Quando a hora chegar...
















A hora
que anda na angústia forte da esperança
e na alegria trágica e cansada
de não esperar.

Quando a hora chegar...

Essa hora
com bandeiras, bandeiras e bandeiras
e multidões vibrantes a passar
para dizer aos homens do passado,
para dizer aos homens do futuro,
para dizer presente
e continuar.

Quando a hora chegar...

Há crianças sem pai,
há crianças sem mãe,
que hão-de por risos novos sobre a boca
que ainda não tem pão;
que hão-de pôr brilhos novos sobre os olhos
que ainda vão chorar;
que hão-de pôr forças novas no combate
que vai recomeçar.

Quando a hora chegar...

Cimentada com lágrimas e sangue
e dor
e ansiedade
e medo de a perder...

Ah!, levem-me também,
eu vou também!
( Eu quero ter esta certeza
se não sobreviver!)...




Cochat Osório
1966

Yamore




Salif Keita & Cesária Évora

Tonga

















Banana. Palmar. Dendém.
Café robusta de Angola.

Preto na tonga
voluntário
contratado
preto-prato-colher
manta-sandália:
seus pertences nas estradas de Angola.

Monangamba de vinte angolares por dia
fuba-peixe seco-óleo de palma
esteira na cama de tábua nua.
Monandengues de dez angolares:
meninos sem escola
no café robusta de Angola
que brincam de gente adulta
com a experiência do mundo nos olhos
e barriga grande na infância da vida.

Banana. Palmar. Dendém.
Café robusta de Angola

E os meninos sem mãe
as mães sem marido
e os homens sem mulher
pelas estradas de Angola.



Cândido da Velha

Confissão de amor



















Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.



Clarice Lispector
In "A Descoberta do Mundo"

Regressei

















Regressei de outros mares
Trazendo em cada mão uma lembrança.
Antiga ou nova.
Minha ou alheia.
Regressei docemente de
outros mares
Trazendo gravado em cada mão muitas lembranças
Muitas canções.
Muitas esperanças.




Garcia Bires

In “Olheando”

Tema para um possível poema



















Com os desengraxados
meus autopés de luxo número 40 tipo escuro
de biqueira estilo metatarsos de nascença
directamente autopisando os alcatrões no verão
percorro este universo emigrando
diariamente no interior africano
deste território minha pátria
escondido no meu País.

Mas não interessa
aprofundar os trinta dias seguidos por mês
sem uma única folga sequer aos domingos.
Que os meus olhos no tabu das montras
das sapatarias consomem mil modelos
de sapatos subjectivos
incompráveis por mim.

E no limiar dos restaurantes exóticos
ao meu nariz agredido pelo cheiro da comida
chegam bifes totalmente abstractos
e Pavlov põe-me a mastigar
saborosos menus de nada.

Amigos.
Naturalmente se eu fosse poeta em vez de gente
isto seria com certeza o tema de uma poesia africana
com meias solas de asfalto nos pés descalços
sapatos por comprar
comida por comer
e muito povo à mistura.

Mas como sou apenas um homem como toda a gente
a transitar na cidade com autopés de luxo número 40
em vez de uma poesia mais ou menos africana
FICA ASSIM!



José Craveirinha
(1964)

A ler

O post da Phwo que nos remete para mais uma monstruosa obscenidade do poder em Angola.


"O Inferno existe à face da terra e não só no Zimbabué ou na Coreia do Norte", escreve Armando Rocheteau no 2+2=5.
Aung San Suu Kyi sabe-o melhor que ninguém!
Liberdade, já!


Com atrazo... indesculpável (no mínimo) dou as boas vindas a mais um magnífico volume da série Chuinga, da amiga Isabella Oliveira. Já vai no quinto!
Parabéns. Pelo volume e pelo aniversário, mesmo que tenha já encerrado as comemorações.


Fica ainda o solene anúncio que a minha particular e talentosa amiga Célia Silva regressou ás lides, renascida das cinzas para um voo que, esperamos todos, seja grandioso.
Força, amiga!
Mostra aí todo o teu talento.

Luanda


















Fico malaíko com as cenas que constato
Queres ver Luanda, vê primeiro Ecos e Factos
Se água tem, energia não tem.
Se energia tem, água não tem,
nem tudo tá sebem.
A maioria não se importa é só tchillar
Sexta farrar,
sábado no bar,
segunda a kubar.
E Luanda vai morrendo lentamente.
Sem jovens para erguer uma capital diferente.
Se não formos nós, quem fará por nós?
O estrangeiro explora e foge
nunca querer saber de nós.
Não há estrilho, para tudo existe um prazo.
Nossa existência não é obra do acaso.
Digam de que forma a gente vai criticar,
vai relatar, não só Luanda,
Angola vai mudar.

Só a mudança para sarar minha ferida,
ua ué Luanda, amor da minha vida.

Essa é a minha, a tua, a nossa, vossa banda.
Essa é a minha, a tua, a nossa, vossa Luanda.

A preto e branco, como vês, nua e crua,
crua e nua,
conclusões efectua
O kimbundo? nana.
O português? Fala-se mal!
Não é normal,
em termos de linguagem, tá-se mal.
Luz, niente, água, niente.
É melhor eu me calar para não ser inconveniente.
O tempo da TPA, quase todo já foi-se.
Porque quase todos têm em casa, a Multichoice.
Channel O, MTV, KTV, CBC, SIC, Globo, RTPI.
Sim, a globalização tem força,
vemos outras culturas e esquecemo-nos da nossa.
Tu vês que eu não falo a toa.
Roulottes em Luanda é tipo cafés em Lisboa.
Reparem só, analisem com atenção:
sobre o preço da gasolina, sobre o preço do pão.
Sobe quase tudo, só o salário que não.
Bwé de makas, bwé de estrilhos, bwé de kilingas mayuya.

Mas mesmo assim, minha Luanda kuia.
Mas 'inda assim, minha Luanda kuia.
Mas mesmo assim, minha Luanda kuia.
Mas 'inda assim, minha Luanda kuia.

Bem-vindo a Luanda, a cidade que acontece,
onde todos são pausados, todos são kaenches,
onde há bwé de problemas, mas ninguém tá preocupado.
Muitos passam fome, mas tão sempre bem grifados.
Não há retalhos, problemas é a grosso.
Tá na moda formar grupo e dar com catana nos outros.
Tem dicas para rir, tem dicas pra chorar.
E o Luandense até nos óbitos, gosta de se mostrar.
Isso é Luanda, ninguém respeita nada.
Com conversa, não se entendem,
só se entendem com porrada.
Fico malaíko com o clima da cidade,
na porta da discoteca, todos são celebridade
Ninguém pode esperar, todo mundo quer ser visto.
"Hey brother, sou VIP". Comé, brother, evita isso!
Esse mambo tá empestado de ilusão,
Luanda é uma selva onde todos querem ser o leão.



Kalibrados








O que nós não vimos






















O que nós não vimos
donde escorria
o suor da surucucu
que caía
gota a gota
sobre aquela terra.

Um colar de platina
ou
as mãos cheias de missangas
deste modo me prendeste
às flores de laranjeira
que não tive.

Busco o teu corpo
como a sombra das tamareiras.
Dás-me de beber
e eu deslizo pela corrente
dessa água.

Tu és o meu oásis
e dispo os meus véus
em cada palmeira.
Fomos peregrinos de tantos lugares
e de gentes de outras línguas
bebemos água de muitas fontes.

Mas àquela cachoeira
que nos pertencia
não podíamos chegar.
Prenderam-nos no exílio
e na tortura de a sonhar.

Não somos mais peregrinos,
estamos em outro lugar.
Mas viaja a alma
para nessa cachoeira mergulhar.
Calar essa voz
que no caos do mundo,
dulcíssima e magoada,
não é senão um sopro
fora dos caminhos.

Recolher ao útero
quente e macio
não pelo cordão,
perdido para sempre,
mas por essa voz
silenciada



Maria Alexandre Dáskalos

N'gola - Flor de bronze























Filha de branco que morreu na guerra
e de uma preta linda do Libolo,
o teu olhar até de noite encerra
todo o luar das lendas do Catolo!

Ó flor estranha! já não tem consolo
a tua magoa, a tua dor na terra!
Ó flor estranha do febril Capolo
neta dum soba que perdeu a guerra!

Estátua ardente em bronzeadas chamas
que tentação e perdição derramas
por sobre a história negra, quase finda!

Neta dum soba que acabou chorando,
filha de branco que morreu lutando
e duma preta tristemente linda!




Thomaz Vieira da Cruz

Quem pode impedir a Primavera


















Quem pode impedir a Primavera
Se as árvores se vão cobrir de flores
E o homem se sentiu sorrir à Vida?

Quem pode impedir a surda guerra
Que vai nos campos deslocando as pedras
- Mudas comparsas no ritmo das estações -
E da terra inerte ergueu milhares de lanças
Que a tremer avançam, cintilantes, para o limite
Em que a luz aquosa se derrama
Como um mar infinito onde o arado
Abre caminho misterioso à seiva inquieta!

Quem pode impedir a Primavera
Se estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos.

Quem?...
Se os sonhos maus do Inverno dão lugar à Primavera!



Ruy Cinatti
In “Nós não somos deste mundo”

Em teus dentes

















Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas
de elefantes adormecidos



Arlindo Barbeitos

Xirico





























domesticadas asas estrebucham
o ancestral sonho sitiado que
a exiguidade geométrica da gaiola calca
enquanto ouvimos rádio na sala de estar

dura um instante infinitesimal a pausa do locutor
e nesse vazio
breve
oportuno
subversivo o pássaro entoa as cores do arco-íris
os sons fluem em cascata através dos arames
e estacam na sala
- vá tu saber se o bicho está triste ou alegre"



Simeão Cachamba




Xirico: pássaro e marca de transístor muito popular

Fruta


















Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quitandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Oh agridoce quitanda
da fruta verde!...



Tomás Vieira da Cruz

Se o Amor voltasse















Eu sei que o amor
nos visitou
mas nós não estávamos
atentos


Tínhamos dezoito anos
e éramos velozes
como os corcéis na pradaria
e efémeros como as flores
que morrem
na estação das chuvas


Hoje se o amor voltasse
eu sei que o reconheceríamos
pela ansiedade
que provoca
e pelo brilho que nos deixa
no olhar


Mas maduros
talvez não o aceitássemos
porque lavrado
o seu incêndio
sobre os meridianos
do coração
pouca certeza teríamos
de sobreviver.



Rui Augusto

1 de Junho




Gostaria de hoje (e sempre) ter a convicção absoluta que estamos a construir um mundo melhor para as nossas crianças.
Receio, porém, que a reputação da nossa geração não venha a ser, justamente, muito favorável no futuro.
Temos tudo para lhes legar um mundo melhor! Porque não o fazemos?