O gemido das palmas das mãos
















Foto de Paulo Ribeiro, aqui



O sol nasceu nas palmas das mãos
no gemido das palmas das mãos do sol
e as palmas das mãos ficaram com manchas solares frias.
Contaram-se os dias nos dedos das palmas das mãos frias
nasciam e cresciam
os dedos do sol ardiam
e as palmas das mãos morriam.



António Pompílio

O feitiço da boca



















-Umbanda wamela okuha.
(O feitiço da boca é o silêncio)

Sentado na Kitanda o tempo é um
cavalo a trote na arquitectura
futurista do meu pensamento

Diria para o Tirso, ó meu santo
este café na baixa e um bagaço
fazem da Kitanda um paraíso

Diria mesmo que no céu há peixes
que também toma café estrangeiros
em busca de uma Sagrada Esperança

diria se o vento não soubesse
que o feitiço da boca é o sinal
de silêncio na pele do tempo


(Tomando café na Kitanda das Letras com o Lopito)



José Luís Mendonça

Meditemos

























"Não importa o que o passado fez de mim. Importa o que eu farei com o que o passado fez de mim."



Jean-Paul Sartre

Se o Amor voltasse



















Eu sei que o amor
nos visitou
mas nós não estávamos
atentos

Tínhamos dezoito anos
e éramos velozes
como os corcéis na pradaria
e efémeros como as flores
que morrem
na estação das chuvas

Hoje se o amor voltasse
eu sei que o reconheceríamos
pela ansiedade
que provoca
e pelo brilho que nos deixa
no olhar

Mas maduros
talvez não o aceitássemos
porque lavrado
o seu incêndio
sobre os meridianos
do coração
pouca certeza teríamos
de sobreviver.


Rui Augusto

Tristeza

























Quando um dia
Despertares
Dessa infausta letargia
E compreenderes
A febre da ambição que me consome…

Quando entenderes

A expressão triste do meu olhar
Amargurado
Fitando o espaço
Numa ansiedade interminável

Quando souberes

Porque contemplo assombrado
O mar,
E invejo as aves que esvoaçam
Livremente pelo ar…

Ah … Então, Sim,

Nesse dia
Farto e desejado
Sentirás o coração palpitar
A maldição
De um ser aviltado
Que clama protecção



Beto Van-Dúnem

Poemas ao sol
















Poema II


O sol da minha terra
o seu tamanho
entra em todos os olhos
mesmo nas fundas cacimbas sem futuro
é a única oferta

O sol da minha terra
o seu calor
arde em todos os peitos
aquele fogo lento das massuíkas
é o único alimento

O sol da minha terra
acende em todas as coisas
as cores do céu folhas musseque
é a única pureza.

O sol da minha terra
por vezes é também
um relâmpago ao meio dia
e queima as sombras dos homens.

O sol da minha terra!

O sol da minha terra!



Arnaldo Santos

Concessão
















Foto de Vladimir Borowicz, via "O Jumento"



o laço soltou-se...
e teus cabelos envolveram-te
as costas, o busto
deixando tão só ranhuras
por onde assomavam
em gesto presente
teus mamilos

o laço desfez-se
quando disseste:
... entra em mim!


Roderick Nehone

Uma perna perdida

















(Mbanza Congo)





A perna
decapitada pela energia
da explosão
da mina
disse adeus ao dono
e partiu
no fumo

Uma perna
camuflada
rota
escondendo seu pé
numa bota
esburacada
anda pedindo esmolas
pela rua

Leva no sangue
que das suas veias
escorre
o percurso do dono
que recorre
recuando o tempo

Já trepou caminhões
desceu
andou aos empurrões
cresceu
pela parada marchou
subiu
nos gabinetes entrou
fugiu
nos musseques pululou
rugiu
de tristeza chorou
e sumiu

Sumiu dos escombros
do que fora seu tugúrio
uma perna fardada
tomou de assalto a marginal
e desfilou
sonhou!

Sonhou
a perna dilacerada
encostada
no verde do semáforo
apagado
na cidade queimada
Sonhou
de boca aberta
ao pó
dos 4x4 fumegando
luxo e distância

Uma perna
rasga a paz urbana
e viola o sono da seda
que veste o perfume
exalado
de seus ex-camaradas

Decapitada uma perna
pela energia da explosão
vermelha uma lanterna
parindo a luz
do dia

Que se apague para sempre
a penumbra
do olhar!



Roderick Nehone

Símbolo


















O formato daquele berço foi um símbolo
O menino em miragens impossíveis
dormia sonhando com navios de papel
enquanto eu contemplava
a cismar,
o conjunto daquela harmonia
sumindo-se na linha do mar.

Navio-berço de menino crioulo
navio-guia que ficou sem ir
“navio idêntico ao navio da nossa derrota parada”.



Luís Romano
In “Clima”

Estou escondido na cor amarga do fim da tarde



















estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que o
outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento



Valter Hugo Mãe
in "Estou escondido na cor amarga do fim da tarde"

Agora eu era linda outra vez























Foto de Angola em Fotos





Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor




Valter Hugo Mãe
in «O Resto Da Minha Vida seguido de A Remoção das Almas»

Joueur de balafon



Fantástico!

Meditemos






















Paulina Chiziane





“Sei que devo modificar o ambiente pela força de meu espírito por que às preces aos deuses homens ou aos deuses mulheres, quer sejam feitas em voz alta ou silenciosa, as únicas respostas que se obtêm são silêncio absoluto.”



Paulina Chiziane

Quem muito viu























Foto de Nuno Santos, aqui





Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas,
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
o mundo e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi-
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.



Jorge de Sena
in "Poesia, Vol III"

Terra molhada



















Não vou negar a saudade
De tantos cheiros impregnada;
Mas daqueles que me lembro
Há um, deixa-me assim arrasada...

Terra molhada, cheirosa
Que não mais vou esquecer...
Dos quentes verões chuvosos
Não se cansa de beber...

Por momentos, por instantes,
Quem me dera tal sentir,
Dar de beber à minha alma
Sequiosa de partir...


Ana Bela

Surrealismo


















René Magritte - Le double secret (1927)





O que sobrou
do lixo
rio raso
terra vazia
país de metal
e máquina
a ciência
não tem resposta
a medicina
prolonga
o sofrimento
uma realidade
tela de Magritte.



Almandrade

Audácia
























Foto de Nuno Barreto, aqui





Audácia
Os versos
dos seus
poemas
eram de
cactos
mas uma
ou outra
borboleta
multicor
pousava
nos seus
espinhos.




Hamilton Monteiro
in "Gume das Palavras"

Madrugada À Dentro
























Como eu queria que este dia não terminasse...
Como eu queria que este sonho fosse verdade...
Como eu queria que o dia e a noite,
O sol e a lua, parassem cada
Uma na sua constelação,
Que o dia não terminasse e
Que a noite não chegasse.

Tiraste-me o sol, deixaste-me só
Tiraste-me a lua, deixaste-me lembranças,
Tiraste-me o dia, deixaste-me doida,
Tiraste-me a noite, deixaste-me nua.

Como eu queria ter,
O teu corpo colado ao meu,
Os teus lábios nos meus,
Os teus dedos entrelaçados com os meus.

Como eu queria que ouvisses
O sufocado gemido saído
Da minha boca, o bater
Descompassado do meu coração,
Que visses a alegria espalmada no
Meu rosto, gotas salpicantes de
Suor que brotam do meu corpo...

Ah!... Como eu queria que esta noite
Não terminasse, para que soubesses
Que te amo e que mesmo distante
Sinto-me presente... em sonhos.



Leila dos Anjos

Dia Internacional do Animal




















Homenagem aos meus companheiros

Mila

















Foto de Sergey Ozerov, via "O Jumento"




dá-me os cheiros
mais íntimos
xxxxxxxxque teu corpo oferece

dá-me a leveza
mais urgente
que acalenta os sonhos
xxxxxxxtua alma

dá-me este recanto xxxxxsol
mais quente
xxxxxxxxbrota do teu sorrir
xxxxxxxxxxxxxxxxxtons maduros mangas

Dá-me o que palpita em nós
xxxxxx- parece escaparque
xxxxxxos nossos sentidos
cruzam num igual desmaiar

xxxxxxdar-te-ei
a explosão colorida das nuvens

estas mãos xxxxdiamantes xxxxbrilho oculto

Esperar-te-ei
xxxxxxxxxxxbeijo longo que imita a mwamba
xxrosa viçosa com as cores de Maio
xxxxxxxxxxxmúsica quente tambores de África
xxxxxxxxxxxeste coração
inchado da saborosas rimas.





António Azzevas

Quarto poema sem título

























Como posso não amar-te

Arte de todas as artes
Pedaço de paraíso
Flor múltipla e multicolor
Segredo que segreda em voz alta
Aquário de búzios voadores
Raiz, folha e árvore invisível
Métrica perfeita de uma canção criada
Fuga e regresso de emoções desconhecidas
Salmo que se soletra pela manhã
Alimento de matéria imaterial
Casa sem portas, janelas e tecto.

Como posso não amar-te?



António Gonçalves