Sinos d’alma




















Eu não vivo
vivo disperso no mar cósmico
a minha existência é uma nuvem
eu não vivo
porque vivo a inconstância do ser.

Eu não vivo
vivo o grande conflito
entre as estrelas e os deuses
então me esqueço
dissipo-me nas trevas do Universo
então me vendo ao existencialismo de Sartre
e afogo-me no álcool da teodiceia.

Desisto: a vida viveu-me
aspirando os meus parcos desejos.
Não existo:
dei à Vida a minha vida!



Cristóvão Luís Neto

Posteridade



















Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.




Rui Knopfli

A doçura dos teus lábios















hoje vou enviar-te
um poema pela brisa

hás-de recebê-lo
na porta número 69
da rua jota

o poema cantará
o sol dos teus olhos
e falará aos pássaros
a doçura do bairro operário

e mais nos teus lábios a
candura da tua voz será o poema

hoje vou enviar-te
um poema pela brisa



Fernando Kafukeno

Alzheimer...é o que é!












A Procuradoria-Geral da República (PGR) analisou esta quinta-feira o cartaz do Partido Nacional Renovador contra a imigração e concluiu que, «por si só», o cartaz não constitui um crime de «discriminação racial ou religiosa».


Pois não, todos nós é que somos estúpidos!!
Tristeza.
Isto na mesma semana em que estes xenófobos elegeram Salazar como o «melhor» português de sempre.
Semana para riscar da história contemporânea de Portugal. Lamentável!

Mutilações




















a mão
o pé
um braço
o sorriso
a tua meninez

só não
te mutilaram

o espanto





José Mena Abrantes
In “Meninos”

Tudo é fugaz




























6
Tudo é fugaz
entre o desenho do teu pé na areia
e a onda que desfaz
a marca

Entre a guerra e a paz
retorno fisicamente o poema a onda
constante meditação primeira.

Nós e as coisas.

Nada permanece que não seja
para a necessária mudança.
Que o diga o mar.




Manuel Rui Monteiro
in "Mar Novo"

Poema de amor























Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar,
tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,
nós olhando triste uma saudade imensa
num corpo de mulher metamorfoseada.

Sou demasiado são para me esquecer
do tempo apaixonado que vivi nos teus braços
e bebo no teu um coração meu
adormecido no mar do meu cansaço
ou no rio das minhas secas lágrimas.

Tardará muito, se é que as horas contam,
ver-te, de novo, perto de mim, longe,
mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto,
um dia a menos, o da tua chegada.
E assim me fico, rente ao horizonte,
abrigado da chuva numa cabine telefónica,
e ligo para ti - que número? - ninguém responde
do oceano que avança e retrai colinas,
o vulto de um navio, tu na amurada
acenando um lenço, ó minha pomba branca!...

Como se tempestade houvesse e um naufrágio de chuva
- as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se...-
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, a minha boca neles
carregadas de ilhas, de nocturnos perfumes
que ateiam lumes, ó minha idolatrada,
na minh'alma inquieta um outro bater d'asas
ou num jardim um leito de flores!...




Ruy Cinatti

Junho de 1977
in «56 Poemas»

Teo Torriatte (Let Us Cling Together)






When I'm gone
No need to wonder if I ever think of you
The same moon shines
The same wind blows
For both of us, and time is but a paper moon...
Be not gone

Though I'm gone
It's just as though I hold the flower that touches you
A new life grows
The blossom knows
There's no one else could warm my heart as much as you...
Be not gone

Let us cling together as the years go by
Oh my love, my love
In the quiet of the night
Let our candle always burn
Let us never lose the lessons we have learned

Teo torriatte konomama iko
Aisuruhito yo
Shizukana yoi ni
Hikario tomoshi
Itoshiki oshieo idaki

Hear my song
Still think of me the way you've come to think of me
The nights grow long
But dreams live on
Just close your pretty eyes and you can be with me...
Dream on

Teo torriatte konomama iko
Aisuruhito yo
Shizukana yoi ni
Hikario tomoshi
Itoshiki oshieo idaki

When I'm gone
They'll say we're all fools and we don't understand
Oh be strong
Don't turn your heart
We're all
You're all
For all
For always

Let us cling together as the years go by
Oh my love, my love
In the quiet of the night
Let our candle always burn
Let us never lose the lessons we have learned



Queen
In "A Day at the Races"

Oh flor da noite














Oh flor da noite
onde todo o orvalho se perde

teus olhos
não são estrelas
não são colibris

teus olhos
são abismos imensos
onde na escuridão
todo um passado se esconde

teus olhos
são abismos imensos
onde na escuridão
todo um futuro se forma

oh flor da noite
onde todo o orvalho se perde

teus olhos
não são estrelas
não são colibris



Arlindo Barbeitos
In “Angola Angolê Angolema”

Um dendém maduro

















Um dendém maduro
com cana doce
é bom
muitos não comem
porque não têm cana-de-açúcar

Passam à frente da luz
não olham
porque nem todos sabem sentir o perfume

Eu gosto por exemplo
perguntar aos mais velhos
como era noutro tempo

Mas o que eu mesmo gosto mais
é passar as mãos no teu cabelo
quando a nossa boca é só uma




Costa Andrade

Confecção de um poema esfarrapado























confessou: «sou uma aranha preguiçosa.» na época eu representava, p’ra mim mesmo, o papel de andarilho-pedinte. gostei da única teia daquela aranha - ia de encontro à minha ideia de desobjecto. era uma teia muito rota, tinha mais buraco que fio: «é p’ra poupar baba», explicou a aranha, enquanto arrastava um pouco mais a posição. «você gosta de fazer poemas?, leve essa teia consigo. ela apanha mais pessoas que moscas. e responde bem a desejos idiotas.» quis agradecer à aranha, mas ela: «agora desvie-se do caminho do sol.»
hoje em noite imito a aranha preguiçosa: por vezes deixo essa teia aberta no meio de nenhuma tarde. por vezes estendo a teia numa madrugada brilhante. de manhã encontro na teia fiapos inexplicáveis da natureza e da natureza das pessoas. guardo sempre no bolso um pouco da baba que essa aranha me ofertou. com fios dessa baba faço remendos nesses fiapos, tal igual a tia maria fazia aquelas almofadas bonitas na sala da nossa infância. a confecção de poemas a partir de fiapos inconcretos é uma arte diferente da feitura de almofadas, até porque as almofadas podem ainda ter utilidade apalpável.
tenho pena que a tia maria não tenha cruzado a berma da estrada desta aranha. incríveis almofadas teriam ornamentado a nossa infância...




Ndalu de Almeida

Grande ardósia


























um homem triste sabe guiar-se nos labirintos da grande ardósia. um poeta ilumina as suas lágrimas com a escuridão do universo. na baba mais suja de uma lesma aparecem reflexos leves de estrelas ascendentes. havia um velho muito velho que falava assim: «a grande ardósia é o verdadeiro telhado do mundo.» as lágrimas das pessoas tristes, inundadas de coisas profundas, são por vezes chamadas de estrelas. [esse velho lhes chama «acesas janelas».]
é preciso ter calos nas mãos para afagar a grande ardósia. ou muita doçura campestre. alguns humanos teimam em chamar «universo» à grande ardósia. [ela nunca se ofendeu.]




Ndalu de Almeida

A terra que te ofereço























1
Quando,
ansiosa,
pela primeira vez
pisares
a terra que te ofereço,
estarei presente
para auscultar,
no ar,
a viração suave do encontro
da lua que transportas
com a sólida
a materna nudez do horizonte.

Quando,
ansioso,
te vir a caminhar
no chão de minha oferta,
coloco,
brandamente,
em tuas mãos,
uma quinda de mel
colhido em tardes quentes
de irreversível
votação ao Sul.


2
Trago
para ti
em cada mão
aberta,
os frutos mais recentes
desse Outono
que te ofereço verde:
o mês mais farto de óleos
e ternura avulsa.
E dou-te a mão
para que possas
ver,
mais confiante,
a vastidão
sonora
de uma aurora
elaborada em espera
e reflectida
na rápida torrente
que se mede em cor.


3
Num mapa
desdobrado para ti,
eu marcarei
as rotas
que sei já
e quero dar-te:
o deslizar de um gesto,
a esteira fumegante
de um archote
aceso,
um tracejar
vermelho
de pés nus,
um corredor aberto
na savana,
um navegável
mar de plasma
quente.



Ruy Duarte de Carvalho
In “A decisão da idade”

São Tomé na equador


























Hoje o Sol passou a pique por aqui.
Foto de Décio Lopes em Caminhadas e Descoberta em STP





São Tomé bô tem uns tonte di nos
Bô é parte d'nos storia e nos dor
Na bô seiva bô tem Bantu, Crioulo e Angolan

São Tomé bô tem uns tonte di nôs
Bô é parte d'nôs estoria e nôs dor
São Tomé na bô veia ta corrê um so sangue

Bô fui lugar di sofrimento, ma ligria bô podê da
S'tud bôs fidje bô contempla
São Tomé bô tem riqueza

Ma fortuna maior é valor e amor
Di tude bôs fidje
E sês vontade na vivê djunt'
Num terrinha ondé verde é mas verde

São Tomé, São Tomé
Ka esquecê quem pa bô luta
São Tomé, São Tomé
Na equador di nos dor

São Tomé, São Tomé
Caminho longe ja vra mas perto
Bem mas perto di bô futuro
Passode é so peso

Ressentimento ka ta construi
Realidade é perdâo
E perdâo podê ser uniâo
Di tud bôs fidje, São Tomé


Cesária Évora









Meu amor, eu te falo de um amor


























Meu amor, eu te falo de um amor
que toma a forma de todos os poderes do tempo
que tenha os compassos na duração da vida
e que se reconheça em um só ser
e um sem o outro sintam-se como que decantados.
Eu te falo de um amor de reconhecimentos antigos
e de encontros perpétuos
de um feixe de luz pousado sobre tua fronte
em direção aos pontos cardeais do seu corpo.
Eu te falo do fundo dos desesperos
e das horas de lentidão extrema.

Meu amor
dos olhos secos
da alma negra
dos cabelos ruivos

Teus filetes alongados escoam-se pelas minhas pernas de Cigana Vesperal!
Nossos suspiros marcam no Espaço uma confusão de estrelas entrelaçadas
de Mercúrio
e o nosso signo fala da mesma fórmula que extende os limites do
Sobrenatural ao Humano
Nossos poderes vinculam-se aos mistérios no Universo das coisas
e transformam a vida num bater eterno,
como da asa das borboletas.
O movimento volitivo que alimenta o homem encontrou em nós
sua bola de cristal de propriedades encantatórias
os pecados incestuosos de nossas noites
marcam,
mais uma vez,
a despedida dos olhares mascarados em retornos e monumentos de
prazeres imensos.

Meu amor
eu te falo pela língua da víbora
pelos dons dos castelos em ruínas
e pelas fogueiras armadas em meu coração
Eu te falo pelo delicado prisma que escolheste para amar
Meu amor
a vida faz parte do mistério do encontro das pessoas
que habitam as terras estranhas.

Meu amor
as circunstâncias do desespero são sempre apaixonadas...




Leila Ferraz Lima
In A PHALA – Revista do Movimento Surrealista

Ao meu país




















Rancho Folclórico da Ribeira de Celavisa





Se é nesta dor que adormeço
sempre numa ternura sem tempo,
nos desenhos te revelo as palavras
soltas e marítimas
abraços prometidos algures
cantares, assim esmoreço

Se é neste sonho que te conheço
sempre num desvario louco
nos desenhos te encanto
soltas e brandas linhas
abraços em traços fortes
cantares, assim permaneço

Se é neste querer que te estremeço
sempre num prazer alucinado
nos desenhos me dou
soltos tristes e alegres
abraços de oceanos
cantares, assim entristeço

Se é neste viver que te enalteço
sempre num inventar de águas
nos desenhos danço os ventos
soltos e uivantes
abraços de amores
cantares, assim esqueço



Constança Lucas

Elogio da Dialéctica





















Morgan Tsvangirai, á saída do hospital após "tratamento profiláctico" aplicado pela polícia ás mãos de Robert Mugabe





A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nòs queremos nunca mais o alcançaremos

Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nòs
De quem depende que ela acabe? Também de nòs
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aì que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã



Bertold Brecht

A questão não pode ser "quem foi" mas sim "a quem aproveita"

















Que a política de contenção do défice tem sido particularmente difícil e penosa para a imensa maioria dos portugueses, não é novidade...
Que o governo para atingir esse objectivo tem lançado mão a quase tudo tornando a vida dos portugueses muitas vezes num inferno, é público...
Que o autismo e a cegueira inerente a esse combate, em muitas frentes, se tem mostrado particularmente injusto para vastas camadas da população, é notório...
Que o governo para obter o silêncio das camadas mais favorecidas não ataque os seus interesses e lucros, é por demais evidente...

Mesmo assim, os portugueses, de uma forma absolutamente estóica, tem entendido os sacrifícios, ainda que injustos... e aguentado com um ou outro queixume...
´
Porém algo se está a passar... começam a haver demasiados disparates bem explicados e situações inacreditáveis, habilmente escondidas ou disfarçadas. E isso é preocupante.

O governo através do Decreto-Lei 55/2007, de 12 deste mês determina que poderão ocorrer excepções à restrição de construção em povoamentos florestais, permitindo projectos de “interesse público” ou “empreendimentos com relevante interesse geral”.

Mais, o reconhecimento pode ser pedido, e concedido, a qualquer momento através de um despacho conjunto dos governantes do Ambiente, da Agricultura e eventualmente do membro do Governo envolvido no projecto.

Se isto não fosse o bastante, o pedido de reconhecimento é entregue no Ministério do Ambiente e implica um documento comprovativo de que os interessados são alheios ao incêndio “emitido pelo responsável máximo do posto da GNR da área territorialmente competente”.

Leio mas nem quero acreditar...

A lei que impedia a construção em área ardida por determinadao período de tempo foi, assim, co-incinerada na fornalha do que parecem ser estranhos interesses...
Caricato é o facto de que nem sequer se postula ou previne o princípio de - quem beneficia com o crime???... Penso que é intolerável.

Intolerável porque os fogos florestais voltam a ser armas úteis nas mãos de grandes interesses.
Intoleráveis porque voltaremos a ver crescer betão por tudo quanto é lado, sabendo-se dos imensos interesses e corrupção envolvida nestes processos... Será necessário dizer o nome de alguns envolvidos em processos???
Intolerável porque num momento em que grandes alterações climáticas ocorrem, o sinal dado á sociedade é que é benéfico para a economia a prosecussão de crimes ambientais que, sabemo-lo, vão ajudar a hipotecar as possibilidades das gerações futuras de disporem de um país melhor.

Estando tudo entretido com «fait-divers» como a Ota, não custa admitir que isto passe despercebido... e só em Agosto, quando o país estiver de novo a arder alguém se lembre disto.
Não é sequer necessário esperar por Agosto... basta consultar o blog Verão Verde para nos apercebermos que o verão, em face das alterações climáticas, já chegou.

"Operação Lusa"

















Imagem daqui


A escravatura, que apenas legalmente foi abolida, é a todos os títulos abominável.
A "descoberta" de escravos portugueses, escravizados por portugueses num país estrangeiro... é, além disso, intolerável e execrável!

Questões razoáveis, outras nem tanto, agitam-me...



- Porque têm os portugueses que ser tão desprezíveis uns com os outros, sobretudo quando em inferioridade?

- Que razão haverá para que aquando no estrangeiro os portugueses serem ainda menos solidários uns com os outros?

- Que país queremos construir quando persistem entre nós, sem qualquer reprovação social, intocáveis e impunes escroques como estes mercadores de escravos??

- Que país estamos a construir que produz a mais absoluta indigência ao ponto de preferirem, como parece ser o caso, manterem-se como escravos a regressarem ao seu país??

- Que povo somos ao ponto assistirmos impávidos e serenos sem nos indignarmos???



Finalmente, pergunto-me...



- Como irei encarar, na próxima visita ao hipermercado, o preço mais barato de produtos espanhóis á custa da escravatura de compatriotas??

- Será esta a União Europeia que os europeus desejam construir??



Quando aparecer neste sítio algum post, sem texto e apenas com o título Hipócritas significará que algum governante espanhol terá enchido a boca de proteccionismo e/ou terá desancado os chineses por política idêntica...

A galinha dos ovos de ouro

























A SIC, hoje, no seu Jornal da Noite, trouxe a público duas notícias que são efectivamente importantes... e espero que venham a ter consequências no futuro:



- Tribunal de Coimbra, em 2005, absolveu condutor porque o comportamento da autoridade, por inflingir o mesmo preceito legal foi julgado como... insidioso. O condutor circulava a 153 Km/h em autoestrada.



- Em Burgos, aqui ao lado, na vizinha Espanha, um outro condutor foi absolvido, apesar de circular muito acima de 200 Km/h, dado que havia boa visibilidade, pouca circulação e o condutor era experiente.



O presidente da Associação das Escolas de Condução aplaudiu qualquer uma das decisões dado que não está demonstrada relação de causa-efeito entre a velocidade e a sinistralidade.



Além disso sabe-se, é dos livros, que quanto maiores forem as multas e a repressão (na maior parte das vezes cega e obstinada) maior será a corrupção. Escuso-me de indicar datas e corporações envolvidas.



Sou de opinião que o condutor, se bem formado, consciente que dirige um veículo que proporciona inúmeras vantagens, tem que saber que leva nas mãos, se tomar atitudes de negligência, uma arma letal.

Sabendo que a velocidade a que pode circular depende, conforme se aprendeu, da sua perícia, do estado de conservação da viatura, das condições físicas do pavimento, das condições do tráfego e das condições meteorológicas, nomeadamente, o condutor deverá perante um acidente, qualquer que seja a velocidade a que circule ser responsabilizado criminalmente pelos seus actos.

Mais que qualquer multa este é um caminho a percorrer porque incita á responsabilidade e á cidadania.



Quantas vezes tantos de nós, perante barbaridades que se passam á nossa frente, questiona onde andará a polícia?? É infinitamente mais fácil multar um condutor porque, sem perigo, vai a conduzir acima de determinado limite do que verificar e punir as transgressões, algumas verdadeiramente assassinas que todos os dias se presenciam, em locais que as autoridades muito bem conhecem. O problema é que a sua acção nestes locais não gera receitas. Isto porque a vida, em si, nestes casos não é um activo a defender.

O que não é mensurável não pode ser provado - a velocidade é-o! Por isso se tornou a galinha dos ovos de ouro para os cofres do Estado e um verdadeiro El Dorado para muitos.



É bom não esquecer que:



- É perigosíssimo conduzir um Fiat 600 a 120 Km/h, o veículo pode desfazer-se;

- É perigosíssimo conduzir um Mercedes Kompressor a 120 Km/h, a viatura é tão segura que o condutor corre o risco de adormecer.

Eu tinha fome

























Eu tinha fome
e vós fundastes um clube humanitário
para discutir sobre a minha fome
Agradeço-vos!

Eu estava na prisão
e vós correstes à igreja
a rezar pela minha libertação
Agradeço-vos!

Eu estava nú
e vós examinastes sériamente
as consequências morais da minha nudez

Estava doente
e vós ajoelhastes a agradecer ao Senhor
o dom da saúde

Não tinha casa
e vós pregastes o amor de Deus
Parecíeis tão piedosos, tão perto de Deus...

Mas eu ainda tenho fome, continuo só,
nú, doente, prisioneiro e sem casa.
Tenho frio!



Poesia anónima do Malawi
in Além Mar - Dezembro 1984

Barco aberto

























Como um pão aberto
assim te ofereço
este rio em prata
sorrindo

para que te embebedes
da certeza de que
os caminhos se fazem,

como este barco
perseguido por pássaros
enfeitiçados
de todas as latitudes

salpicam da espuma
as luzes da cidade
mostrando-me como
se rompem os contornos.




Ana de Santana

(falta-me um gato)






















falta-me um gato
para fazer festas às palavras.
algumas chegam entre mãos
na carícia breve da madrugada.

enquanto não parto para ítaca,
viajo, aguardo circe
que me transforme em felino agudo.

depois é só encostar-me às pernas
e fitar-me
eu, nariz aquilino, olhos rasgados em mim
na verticalidade da íris;
lamber os pelos, a pele,
arquear o corpo na languidez do gesto.

ficar à espera que a palavra cresça.


abril 2002


José Félix
in “Geografia da Árvore (a reinvenção da memória)”

Fragmento poético






















Foto de Brigida Rocha Brito em Caminhadas e Descoberta em STP





Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos.
E na dura travessia do deserto
aprendemos que a terra prometida era aqui
Ainda aqui e sempre aqui,
Duas ilhas indómitas a desbravar
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.
Emergiremos do canto
como do chão emerge o milho jovem
e nús, inteiros recuperaremos
a transparência do tempo inicial
Puros reabilitaremos o poema e a claridade
para que a palavra amanheça e o sonho não se perca.



Conceição Lima

A guerra do patacom



















Foto de Brigida Rocha Brito em "Africa de todos os sonhos"




Ouvir diáriamente na TSF Carlos Vaz Marques no seu "Pessoal e transmissível"... e ímprescindível.

Sexta-feira e hoje foi transmitida a grande reportagem "A guerra de patacom", gravada na Guiné-Bissau.

A ouvir.

Março mulher




























No encanto do canto
Está Março, mês mulher
Está você vibrando
Adocicando teu perfume
Que canta o querer
Do nosso ser

Está você mulher
Que luta incansavelmente
E sorri na distância do tempo
Como machanana!
E deixa fervilhar,
Na laringe dos teus olhos,
Gotas de kitaba que se
Confundem com kibeba da terra



Kudijimbe

Changara
























Engoliram luas as crianças de Changara
Os olhos delas são pássaros tristes sem voo
que no desespero da fome acumulada
comem estrelas como se fossem grãos de milho.
Quando as sementes secaram nos campos
e o sangue secou nas veias dos rios
e a seiva secou nas veias das plantas
e o sol secou os celeiros da aldeia,
serpentes famintas silvam em volta
do peito cindido. Uma toupeira chora
ao frémito dos imbondeiros. Grave,
arde sobre a erva amarga a dor:
Das luas engolidas pelas crianças
quantas tardará a ecoar nos jornais?




Julius Kazembe
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999

Matinés do Scala


























Obrigatoriamente aos sábados à tarde.
O episódio da série, os desenhos animados
e a coboiada. Ao intervalo, a surtida
ao Hazis para comprar scones e laranjada.
Devolvida a senha de entrada, recomeçava

o espectáculo. Na fila Z, rente
à pantalha, gesticulante, o Piricas
regia a partitura. Hopalong Cassidy
jogava à porrada, sem que o sacana
do chapéu de aba larga lhe caísse,

alguma vez, da pinha. Empinando,
enfunadas as crinas ondulantes, palominos
amestrados completavam o circo. Mas,
neste embuste, o único herói autêntico
era, no comando das operações, o Piricas.




Rui Knopfli

Os sobreviventes depõem




























Assim foi:
A terra calou-se
Um enorme clarão de fumo
Evadiu para as nuvens
Não era terramoto.
Nós vimos

O solo alastrou-se de sangue
Os homens desapareceram
As árvores quebraram-se
Não era terramoto
Nós vimos

As nuvens cobriram-se de água
Os pântanos secaram
As vozes sucumbiram
Para além do Oceano Atlântico
Não era terramoto
Nós vimos

E neste solo arável
Amável como a massambala
Vive nada para sobreviver
Mas com certeza de valer
E tudo isso nós vimos
E sabemos quem foi

E se alguém duvidar
Mostrar-lhe-ei as costas esquartejadas
Os olhos cobertos de sangue
O coração respirando balas
As pernas com muletas
As ruínas da Cahama
Os vestígios de Xangongo

E tudo... E tudo
Que venham só
Aqui estamos nós
Os sobreviventes


Kudijimbe

Brilhante!

























"Ter vivido a infância e a juventude em África não significa, necessariamente, conhecer África e os africanos mas ajuda, quando se conviveu com africanos da mesma idade, se comeu o funge da mesma lata leite Nido negra do fumo da fogueira, se bebeu da mesma água da chuva, se dormiu na mesma cubata, se tenha ouvido a transmissão oral da vida da família, se tenha queimado os pés na areia encarnada a ferver de sol. Ajuda, mas não basta. Não basta dizer-se que se tem coração negro enrolado em pele branca. A inversa também vale. Nenhum branco tem o direito de vestir a pele negra simplesmente porque nunca chegou a sentir a humilhação, a exploração desumana, a ignorância atrevida, o abuso interesseiro, numa sucessão de centenas de anos, não foram escravizados e enviados para o Brasil, para os Estados Unidos ou para a Jamaica, não tiveram necessidade de mostrar um cartão assinado todos os dias pelo patrão empregador, não conheceram o chicote do diligente cipaio seu patrício, não carregaram sacos de café, não escavaram a terra em busca de diamantes."


Helder de Sousa em Mais, sempre mais!!...
Vale a pena acompanhar o blog e, particularmente, ler aí Juventude eterna. Com a devida vénia respiguei um pequeno trecho para, digamos assim, abrir o apetite.
Fantástico.

Meditemos

























O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso".

Madre Teresa de Calcutá